1.
os
rapazes são as criaturas mais estranhas do mundo.
2.
estrutura
corporal: substância sólida - geometria euclidiana levada à letra
do osso - membros matematizados - pele matizada de lógica - linha
limpa de a) a b), de b) a c) - subordinação das partes ao encaixe
estrutural do conjunto - e o conjunto ultrapassando sempre as partes
- qualquer coisa como uma problemática opressiva de simetria -
censura da espinha disforme e da língua distópica - e mais, e menos
- e eu a sentir que me é proibida a figura de partir os meus punhos
ao flectir os pulsos ao ponto do parvo: problema paneleiro? - porque
sim: as chaves de um rapaz são a maçã-de-Adão, a picha,
e os punhos.
3.
os
rapazes fazem História: no fazer dos fluxos do acontecer social,
emergem corpos catalisadores que ou são corpos-homens, ou são como
corpos-homens, ou não o são sequer mas serão ainda assim acusados
de quererem ser corpos-homens. o capital histórico está nas mãos
de um rapaz na medida em que ele tem direito a um Nome; a sua acção
acontece em maiúsculas e corta através do colectivo para constituir
a singularidade do corpo e do gesto. esta não é a singularidade de
uma individualidade característica de qualquer um; esta
singularidade indexa que há Singulares e há Colectivos: que certos
corpos existem, e outros corpos esperam por eles; que certos corpos
têm nome, e outros corpos os nomeiam e namoram. com alguma sorte
ainda nos descobrimos insensíveis o suficiente à categoria do
Indivíduo (categoria anexa: a História; categoria anexa: o Nome)
para não acreditarmos mais em heróis;
massacraríamos um dos pilares sacros da masculinidade ortodoxa
(heróica) se soubéssemos redistribuir
e anonimizar .
4.
um beco e um palácio são a extensão de um corpo de um rapaz. uma
rua é uma veia de um homem a dobrar-se tenso sobre a terra; um passo
nela é uma pulsação na história masculina do mundo; uma queda
nela é perder algo no fluxo sanguíneo de uma opacidade corporal que
só um rapaz pode querer vir a aprender completamente. a metáfora da
terra-mãe é mentira; a rosa-dos-ventos aponta mar fora partidas
patrilineares. basta ouvir o nome mais à letra para saber que a
"pátria" nunca nos foi uma mulher; basta olhar com atenção
para perceber que a arquitectura fascista é a projecção no espaço
do corpo de um homem perfeito - para lá de qualquer substância
líquida ou lábil, para lá de qualquer curvatura do afecto. e na
verdade a praça é como a pátria: tem nome de rapaz e só responde
a quem tem como ela tal nome. o espaço público é um rapaz, como o
rapaz é um espaço público. e como são as únicas criaturas
públicas fabricadas pela História que fabricam, os rapazes
fazem-política; engrossam as vistas e engrossam as vozes:
compensação fálica ad nauseam de
a-minha-política-é-maior-que-a-tua: um rapaz tem a picha tão
grande quanto for a sua opinião, tão pesada quanto for a sua
pressão sobre uma perspectiva. nota: dá para aliterar pau,
opinião e pátria.
5.
como
um rapaz é sólido e não líquido i,
um rapaz não pode chorar. isto é das violências mais importantes
que se faz sobre um rapaz e isto é das condições maiores para o
fazer da violência que um rapaz inflige no mundo. como um rapaz não
tem a opção de se deixar ser líquido (um corpo sólido não
verte), um corpo-rapaz não tem relação com a diluição,
só com a destruição;
o único estado em si oposto ao seu ser-sólido é o seu destruir e o
seu ser-destruído. a masculinidade não comporta mudanças de fase.
um corpo-rapaz ou é sólido e seco ou está mudo e morto. e não,
não é que seja preciso chorar – interessa-me pouco impor uma
normatividade da vulnerabilidade -, mas poder-chorar é tão
importante quanto poder-tudo.
6.
e
visto que não choram, os rapazes têm vistas invencíveis: a
invenção do microscópio é a instrumentalização de um olhar ao
ponto da sua objectificação e subsequente empoderamento enquanto
objectivo objectificador; a linha infinita do telescópio é a
resposta de luto quanto ao triste facto de a esporra fazer um arco
para baixo devido à força anti-masculina da gravidade que impede a
ascensão vertical indefinida do ser-corpo masculino. os rapazes
inventaram uma ciência com os seus corpos invisíveis por e para não
conhecerem os seus corpos. inventaram a arte de dizer “O Mundo É
Assim” e destruíram toda a possibilidade no processo, arruinaram
tudo e cortaram-nos a vida aos pedaços. ii
porque todas as estórias assim contadas são estruturadas no
desaparecimento da pele, na proibição da potência epistemológica
do prazer, no achatamento do globo ocular - a terra é redonda, mas
a vista é plana. um rapaz estende o corpo para cobrir todos os
continentes, mas nunca fala a partir desse corpo
trans-continental. não têm oralidade, não têm a órbita do gozo
como mecanismo de conhecimento do mundo; vistas invencíveis, versões
invisíveis.
corpos
populados de proibições: tabus do toque: se um rapaz suaviza
demasiado os seus calores num abraço a outro, o mundo desagrega. mas
isto à parte os rapazes são os especialistas mundiais na criação
oportunista do máximo de instâncias possíveis para porem os seus
corpos em contacto entre si. estão dispostos a dar socos uns nos
outros pelos tesões sorrateiros e serpentinos que lhes emergem na
parte de trás do cérebro; uma das pequenas vitórias que preservam
contra as suas repressões são essas formas de tumescência na
amígdala. digo isto sem crueldade. minto: digo isto com pouca
crueldade.
8.
conto-vos
uma estória: um rapaz despe-se à beira de um rio e mergulha. há
outro rapaz já dentro do rio. quando olham um para o outro debaixo
de água, os olhos são recalibrados pelo aquático ao ponto da
suspensão de todo o social. nesse momento descobrem-se as partilhas
entre estar molhado e olhar para o corpo de um rapaz, entre estar
despido e as possibilidades da terra. quando se sai da água tudo se
repõe. ou quando se sai de água tudo se decompõe. acontecem coisas
no espectro de um báque e de um beijo. um rapaz tem momentos luminosos
e desfeitos; um rapaz tem momentos laterais e suspeitos. as raposas
sabem bem os factos-chave da masculinidade, as clareiras conhecem bem
o que é um acidente nocturno, os troncos segregam segredos: coeva a
tudo, a seiva é o único facto histórico de confiança. e isto
acontece desde sempre.
9.
criaturas
de contradição cruel que eu quero sei lá como. contradição: porque também: se
matam mais e morrem mais - vêem o corpo rompido sem qualquer
testemunho - compartimentalizam o cérebro ao ponto da quebra -
perdem sempre a própria perda - rasgam a pele para fazer guerra -
sobrevivem ao fascismo de um ângulo recto - competem pela
competência, ao ponto do absurdo - convertem o corpo contente em
capital concreto - fazem luto constante pelos lábios uns dos outros
- destroem-se tão completa e perfeitamente quanto outro corpo
qualquer - etc.
10.
às
vezes a esporra de um rapaz navega o éter do anonimato e impregna
(ser pai é sempre anónimo). às vezes disso deriva um outro rapaz.
se o primeiro rapaz abraça o segundo rapaz, habilita-se a destruir
os centros gravitacionais de ambos ou de os hiper-intensificar,
puxando-os para baixo para a terra molhada (pertença da mãe). se o
primeiro rapaz beijar o segundo rapaz na testa pode descobrir que
todo o canto é novo ou que o mundo foi coberto de cinza ou ambos.
abraçando ou beijando, o primeiro rapaz habilita-se quer a descobrir
que tem pele, quer a destruir completamente o cosmos, e é uma
questão de puro acaso. ou se descobre tão analfabeto quanto o rapaz
zero e o rapaz menos um e a cadeia infinita que o precede, ou
permite germinar qualquer coisa no peito e na barriga, no colo de um
útero inexistente e num coração: nunca se sabe. eu não sei; posso
vir a ser um primeiro rapaz mas nunca fui nem serei o segundo; a
minha mãe foi impregnada pela orelha, por um silêncio e um susto.
11.
não
tenho pai mas tenho avô. o meu avô é, sei lá, o meu avô é
austero, árido, uma oração à autoridade sem ornamento, sem
autoria alguma de uma figura que exceda a função. a pior parte do
poder de um patriarca é que não tem estética. há poucas coisas
mais graves que a sobriedade (a anti-estética) e nesta cultura
punimos os pais pedindo-lhes que sejam, acima de todo, sóbrios: a
mamã abre a saia que expande infinitamente para eu me recolher nas
flores do tecido e perder-me um bom tempo quente e bem e o pai volta
a casa preocupado, corta o não-sentido: recoloca sisudo o sentido.
num corpo-patriarca não folgam os ares; o riso é uma profunda
improbabilidade mecânica que mais parece um chiar na disfunção das
engrenagens do que a vaporosidade bem-vinda de um corpo dobrar sobre
si próprio através da sua existência no espaço: mais que a voz,
ser-pai é grave. antes ser
rapaz.
12.
antes
ser rapaz. estas doze notas são como medos para cada mês do ano.
sei lá, ser rapaz parece-me só mais possível; já aqui o escrevi:
"se eu um dia for um homem, vou ser o contrário
de uma mulher; por outro lado, se eu por agora (ou para sempre)
conseguir ser só um rapaz, então sim, se calhar sou o contrário de
uma rapariga, mas acima de tudo sou certamente o contrário de um
homem também." se for um certo tipo de rapaz, se for um certo
de tipo de não-rapaz: aprendo uma destruição na diluição -
aprendo a ser molhado; aprendo a fazer desaparecer o punho e o poder
- sempre paneleiro e não patriarca; aprendo a poluição da linha -
o limite da pátria; aprendo a ser um rapaz que verte - aprendo uma
versão improvável; aprendo a deixar-me ser visto - e a ver o que me
diz de novo a seiva.
_________________________________________________________________________________
i nem
gasoso; há outros corpos, raramente cis, esses sim gasosos – mas
isso fica para outra altura.
ii este
parágrafo em particular – e quase tudo o que de mais
impressionista aqui se diz sobre o corpo, estados físicos &
geometria – deve muito ou tudo ao trabalho de Donna Haraway, Luce
Irigaray e Elizabeth Grosz em torno de reinterpretações feministas
da epistemologia Ocidental e a sua procura de composição de novos
modelos de ciência que reconstituam as relações
corpo-conhecimento, no processo quebrando com estereótipos do
corpo-homem e do corpo-mulher.
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