o projecto Tudo Vai Melhorar é a filial portuguesa oficial do projecto norte-americano/internacional It Gets Better, que consiste numa colectânea de testemunhos anti-discriminatórios, cuja criação foi inicialmente motivada pelas elevadas taxas de suicídio observadas entre jovens LGBT. intenção benevolente: passar lição contra a dor e perda de ser oprimido pela identificação e apresentação sexual e de género. construção de discurso colectivo, de memória social de oposição à opressão: certo, tudo bem.
mas recorrem uma série
de problemas através destes discursos individuais, por sua vez
problematizando o discurso de conjunto do projecto. vou tentar ser
sucinto: 1) insistência na projecção de um futuro tomado por
melhor, negação dos problemas e prazeres do momento em função de
um eu-futuro; 2) despolitização do discurso, nebulosidade de uma
insistência na crença e no pensamento positivo; 3) descentralização da agência individual, indisponibilidade para discutir capacidades e
potências de acção do sujeito; 4) de facto, desresponsabilização
da capacidade individual de construir acto outro que um auto de fé
muda no futuro; 5) estrutura optimista mas obviamente falsa de que o
avançar da idade significa, inequivocamente, uma redução dos
problemas patentes na experiência LGBT (no mínimo, a experiência de gays idosos justificaria todo um projecto paralelo, "Tudo Vai Piorar"); 6) privilégio do hipotético
em relação ao real e do horizonte abstracto em relação à
resistência actual, e talvez o pior de tudo, 7) uma proibição da
vivência da perda: a página do projecto explicita que este "trabalha para mostrar aos jovens LGBT os níveis de felicidade, potencial e positivismo que as suas vidas poderão alcançar" - mas não o luto e a luta que tal de facto requer. e isto sem falar sequer da completa desproporção de figuras masculinas em comparação com figuras femininas e de figuras cis em comparação com figuras trans: nos quase oitenta vídeos que o projecto compilou até agora, conto aproximadamente 55 homens cis, 16 mulheres cis, 2 cis homens não-normativos e 2 mulheres trans. centraliza-se, como sempre, a problemática LGBT no rapaz ou homem cis; reproduz-se a estrutura discriminatória do costume. e sem falar ainda de o facto de uma das vozes escolhidas ser Hugo Soares, líder da JSD, com a política que se conhece sobre a adopção e co-adopção por casais do mesmo sexo.
ora, estou pouco
interessado em denunciar um projecto que não tem sequer visibilidade
suficiente para ser realmente perigoso em qualquer carga ideológica
que comporte. estou a tentar isso sim indexar como ele é sintomático
de determinados discursos hetero e homonornais que legislam sobre os
afectos, forças e acções de sujeitos queer & trans em
contextos discriminatórios; estou a tentar traçar determinadas
pressões interpretativas que se tornam em coercivas repressões de
possibilidade pessoal e política real. mesmo ao ponto da submissão à violência; o máximo que um guia de apoio do projecto em situações de bullying consegue propor é "Diz que não o façam"; comparar e contrastar com o manifesto Queer Nation nos seus + de 20 anos: "O teu corpo não pode ser um alvo aberto à violência. O teu corpo é digno de protecção. Tens o direito de o defender. [...] Se sabes como gentil e eficientemente imobilizar o teu atacante, então fá-lo. Se não tens essa capacidade, então pensa em arrancar-lhe a merda dos olhos, empurrar o nariz dele para dentro do seu cérebro, cortar-lhe a garganta com uma garrafa partida – faz o que puderes, o que tiveres de fazer, para salvar a tua vida!".
enfim: não me preocupa particularmente este projecto, mas sim os processos mais latos do discurso generalizado de uma honomormatividade apaziguada, benevolente no impulso mas bacoca ao ponto da estupidez brutal e do embrutecimento de possibilidades radicais de ser e fazer. vou pegar num par de testemunhos do projecto, não por me preocuparem os seus oradores individuais mas por explicitarem estruturas que me incomodam, estruturas que acho que urge destruir - e que não são de todo exclusivas ao projecto.
enfim: não me preocupa particularmente este projecto, mas sim os processos mais latos do discurso generalizado de uma honomormatividade apaziguada, benevolente no impulso mas bacoca ao ponto da estupidez brutal e do embrutecimento de possibilidades radicais de ser e fazer. vou pegar num par de testemunhos do projecto, não por me preocuparem os seus oradores individuais mas por explicitarem estruturas que me incomodam, estruturas que acho que urge destruir - e que não são de todo exclusivas ao projecto.
vejamos:
1) testemunho dos Anjos:
a vida não é o que
alguns rufias ou algumas rufias a tentam fazer parecer. a
violência é uma excepção e não a expressão visível de uma regra; é a extravagância de
alguns excêntricos e não sintomática de um tecido social que te rejeita. lição primeira: a violência é uma ficção
produzida por uns poucos e não um facto social de fundo. a homofobia
é uma mentira - como
se os e as rufias não fossem os agentes sociais mais honestos e
transparentes de todos. tudo está ao vosso dispor. não há obstruções materiais, não há quaisquer limites
inteligíveis: o teu acesso é absoluto, absolutamente livre; a
possibilidade é infinita, não tem bloqueios que não os teus (e se
os sentes, resolve-os). há um mundo melhor mais á frente.
o pedido impossível de que suspendas as tuas perdas e prazeres até
um hipotético após em que tudo já tenha remendo; a promessa
impossível de que esteja já garantido que acabado um tempo tu te
tornas possível sem a tua própria luta: há um mundo melhor, e tal
não está sequer predicado na tua acção ou poder. sejam
felizes. sejam felizes. não chorem, não se zanguem; não façam
luto e não lacerem; não gritem nem lancem guerra; não resistam nem
rebentem; não rasguem nem recuperem. sejam felizes. "ser-feliz":
estúpido imperativo heteronormativo de interpretação da
experiência: não convém a este mundo uma fufa ou bicha ou trans em fúria e
choro, em órbita extravagante e extravasar de ódios. sê boa, sê
bom: sê melhor que quem te inflige danos: suporta a dor com um
sorriso, não danifiques tu o sistema: silencia-te, supera-os:
serenamente, transcende.
2) testemunho de José
Castelo Branco:
ter passado por isso e
nunca culpar ninguém. não apontes dedos, não culpabilizes nem
responsabilizes, não personalizes (não só não é nada de
político, também não é nada de pessoal), não direcciones uma
raiva que não te admitimos sequer. quando nós caímos, se nós
acreditarmos em nós próprios e na força divina de deus nosso
senhor... não é uma questão de gesto, não é uma questão de
força, não é uma questão de afecto e não é uma questão de
factos: é uma questão de fé.
ultrapassar. ultrapassa, ultrapassa. não te ultrajes:
ultrapassa. não se preocupe, porque a vida, todos os dias lhe
sorri & o sol quando nasce é para todos. se a
sociedade tem a mesma inclinação democrática que o próprio sol
parece profundamente irrelevante; as forças extra-humanas e
espirituais dizem-te que sim independentemente do que te diga a
interacção humana (não interessam os agentes sociais; interessam a
Vida e o Sol: interessa a redenção transcendente). que saibas que
tudo é para ti, mesmo quando tudo te é tirado e pouco ou nada te é
dado. quem desiste são os medíocres. e esses vão ser cuspidos,
porque está escrito na bíblia. a taxa de suicídio entre jovens
homossexuais é significativamente mais alta do que entre jovens
heterossexuais, facto sintomático de desigualdades estruturais
profundas (e supostamente um dos problemas que motiva o projecto
inteiro). mas sejamos claros: a desistência, a cedência, a cessação
de uma resistência é sintomática de uma mediocridade espiritual e
socialmente condenável, que merece cuspo e desprezo, desejo algum e
nenhuma empatia. tenha fé, acima de tudo, e serenidade. as
forças que te transcendem vão reparar-te e redimir-te; tem calma,
tem paciência; sê sereno e silencioso; atenua e aguenta, aguenta,
aguenta.
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