1. escrita branca
tentativa minha de há
anos para cá, insistência mais intuitiva e opaca do que qualquer
formulação teórica consiga admitir: escrever o corpo, escrever o
corpo, escrever o corpo. lição feminista antiga e repetida de
inscrever o carnal na representação e urgência queer de
fazer-falar o desejo. os arcos desse pensamento tomam a solidez de
lemas claros: exemplo: escrever a pele. disparate tão grande, diz-me
agora a diferença entre as peles, na sua multiplicidade de
pareceres, posições e poderes: disparate falar a pele (a
pele) quando desenhada a diferença entre inscrita a pele versus a
pele que espairece, a pele que entretém versus a pele entrevista, e
por aí fora. a pele: a minha pele é invisível, nem pele é;
transparece directamente ao meu conteúdo-pessoa (leia-se: é
branca); olhar nenhum se interroga ou interrompe nela: é claro que
me permito pensar em grande passo e pressa como falar a pele, como se
existisse tal coisa da pele com pê grande e total.
mas então: qual o acto
de contrição carnal e textual para que as minhas várias
invulnerabilidades não passem impunes? ou: que fazer desse acto de
contrição sequer, se nesta instância dar azo à culpa não é mais
que o retorno ao velho código católico e a reafirmação da
incarnação da lógica de uma vergonha que eternamente reverte e
retorna sobre o próprio mas nada para o outro produz? mais um rapaz
branco escreve sobre si mesmo e a terra mantém-se no eixo. não faço
ideia de que fala possa, mas estou a tactear um método: marcar as
minhas (i)legitimidades; fazer texto sonoro e solidário. pequena
oportunidade de deixar transparecer específico o meu território:
tentativa de marcar a pele branca como tal: escrevê-la e
circunscrevê-la como condição de a estender a outrem.
2. poética parda
cresci com a a minha mãe
a reinventar-se antropóloga física do século XIX e a extraviar por
todas as especulações etnográficas: se o meu avô teve o cabelo
assim, então isso sinaliza que x; e certamente, se a minha
avó tem esta doença sanguínea, e sabe-se que esta doença
sanguínea foi trazida para Portugal através de sangue africano, e
mais especificamente de uma comunidade de escravos africanos que há
séculos se instalou e, através da miscigenação, se dispersou na
área do Sado, segue-se que... a sofisticação da taxonomia racial
dela ultrapassava a reconstituição genealógica ao concretizar-se
em demonstrações práticas: eis que ida à Tunísia, era
frequentemente tomada por tunisina e endereçada em árabe: isto
prova que, etc. lição final: seríamos tudo menos brancos, de
facto, seria impossível ser português e ser branco: a alheira, a
cana do meu nariz e os arabescos do palácio da Pena seriam
igualmente sintomáticos das estórias muitas que fazem a nossa
História e o que faz o nosso ser seria ser perpetuamente desfeito em
tantas coisas ser. efeito: no processo somos ilibados, por mais que
ligeiramente, de qualquer caracterização completa enquanto
racistas; como podemos oprimir não-brancos se brancos afinal nunca
fomos?
a minha mãe gerou
caseira a poesia bem-humorada e meio bronca de que o nosso racismo
acabava logo onde acabava o nexo da nossa identidade étnica
(leia-se: muito cedo); uma marca de sentimentalismo anti-racista
optimista e recuperativo mas irresponsável e problemático. não é
completamente arbitrário (a minha mãe para além de sentimental é
historiadora): há qualquer coisa a dizer quanto à urgência de
complicar o mapeamento étnico da história de Portugal e há
silêncios incómodos em torno dos convívios e confluências que
complicam os termos do corpo branco português, para além de que é
importante contrariar a visão estanque que força o pensamento
pós-colonial a uma geografia sempre externa à metrópole em si,
como se o híbrido fosse produto colonial e não condição
estrutural suprimida de qualquer viver colectivo. mas abre-se a
questão: face às evidentes e insistentes e intransigentes forças
de verdade e ser que o poder produz, de que vale dizer que a pele
portuguesa é porosa e a sua brancura precária? há aí uma
política? há aí uma poética?
3. acidentes
interpretativos
pauso nessa poética:
ele, ele anda por aí com pele pálida mas uma mnemónica no mezungo:
anteontem a boca dele traçava outra memória qualquer; acendia um
acidente interpretativo pelas curvas da cara ao ponto de gerar uma
insegurança bem-afortunada nas linhas que nos fecham corpo e texto e
estória e por momentos pensei: está outro aqui e vou-outro eu e
além disto; as linhas são impuras, quer dizer: eu sei que não há
linhas nenhumas. mas haver poder é algo dizer da linha pura e logo
fazê-la: pouco resta de resistência em beijá-lo numa fala que se
faça de acordo com o respeito ao espaçamento de outra ortografia
correspondente à fisionomia do contingente. antes: nós somos
forçosamente isto que somos e dizer o contrário é feio; só fala
da plasticidade particular da nossa experiência precisamente na
medida em que somos brancos. um ponto: a plasticidade é privilégio
se é plasticidade sem risco ou perda; é saber do jogo das
aparências e das suas belas sortes mas pouco das suas violências,
da estreiteza das suas geometrias. então eu mantenho aí as minhas
curiosidades, mas não chegam como um acto de generosidade,
independentemente de um optimismo. plasticidades da minha própria
pele: durante um ano no Reino Unido sou lido 1) espanhol, 2)
norte-africano, 3) italiano, 4) israelita, 5) e por aí fora: vira
literal a aprendizagem já feita de como a pele só opera em
contexto; de como o corpo só comunica de acordo com o seu
território. mas o privilégio do regresso é que tudo isso
desaparece: sou totalmente transparente outra vez: conforto da
pele-pátria.
4. desconfortos &
derivas
por outro lado,
desconfortos, mais e menos relevantes para este texto. pego num par.
um: o desconforto sexual-identitário de ser “paneleiro” em
sistema heterossexista: o meu desejo e corpo erram; as minhas
famílias e filiações são distorções; o meu amor inverte-se e
subverte; resta-me a sorte de a ciência me legitimar. outro: o
desconforto psíquico-identitário de ser “depressivo” em sistema
neuronormativo: o meu desejo e corpo erram; a minha cognição e
afectos são ilegítimos; as minhas sensações e sentidos
invertem-se e subvertem; resta-me a sorte de a ciência me curar.
Umas poucas lições derivadas: quanto à violência das taxonomias
de sujeitos e corpos e quereres; quanto à hierarquia que estrutura
como as verdades de certos corpos são tomadas por mais legítimas do
que outras; quanto a como há corpos tidos por problemáticos e
patológicos que têm de ser remendados sem serem escutados e que têm
de ser normalizados antes que possam escolher sequer os seus próprios
nomes; quanto à vivência da diferença como vulnerabilidade
constante e violentamente inscrita no corpo; quanto à perpétua
precariedade de ter um corpo Outro...
sorte a minha e condição
desonesta da minha subjectividade: nada disto me marca o corpo se eu
não quiser: a minha pele mantém-se transparente. só um acto de
fala como este interrompe a minha invisibilidade – segue-se que
insisto nisso; faz parte das lições. e um segundo movimento de
deriva dessas lições: o gesto de transposição do aprendido de uma
identidade para outra; a comunicação e tradução entre
experiências e categorias: um jogo com os limites de demarcação
das identidades que desestabilize o absolutismo do identitário, a
favor de um projecto tecido de afinidades e afiliações voluntárias
e empáticas.
5. empatias precárias
então, eis a
possibilidade optimista: a de atalhar e retalhar as lutas: aliterar
precariedades entre “putas” e “paneleiros” e “pretos” e
literais “precários” e quantos outros oprimidos: imaginar
conexões entre vários corpos individuais e colectivos por conhecer
e capacitar. quantos momentos para pôr a falar entre si tantos
sujeitos excêntricos, corpos partidos, desejos desviados e
peles-problemas? quantos modos ainda de descobrir não sei quantas
mais empatias e coligações, filiações voluntárias e inventivas
na crítica e resistência? isto partindo sempre da lição por-vir
de que o nosso problema com corpos e desejos volta sempre a um
problema com o corpo e o desejo; que as opressões
múltiplas e diferenciações discriminatórias voltam de algum modo
importante a algo por sarar quanto à nossa relação com estes; que
o problema são sim estes e aqueles “diferentes” mas também toda
a nossa concepção da diferença. ou seja, que a algum ponto desta
trajectória captamos que estas estruturas discriminatórias são
simultaneamente altamente diferenciadas entre si e por outro lado
simultâneas e partilhadas; encaixam em meta-estruturas maiores,
piores ainda de imaginar e combater, que requerem mobilizações
transversais entre todo o corpo feito objecto e abjecto, à margem da
normatividade e da legitimidade.
do corpo imigrante ao
corpo deficiente, do corpo trans ao corpo negro... visão pesada e
pessimista da profundidade das estruturas materiais e simbólicas que
nos legislam; visão larga e optimista da proliferação dos laços
hipotéticos e reais em que as nossas lutas entram em articulação.
mas cuidado nesses movimentos generalizantes: que não percam a vista
do específico, que não se aproprie e perca a diferença e se
reproduzam precisamente as invisibilidades nocivas, os falsos
universais e desigualdades obscurecidas que se procura combater. que
se mantenha claro que por maiores que sejam as nossas vistas e as
rearticulações das nossas peles, resta sempre e felizmente o
resíduo da particularidade ao ponto do átomo e da impossibilidade
fragilizante e violenta de um “nós” total: a pele é parcial.
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