8.12.13

(bio)diferenças

imagem por Sunaura Taylor

se a criança autista ou esquizofrénica se apresenta incapaz de desenvolver relações sociais e afectivas normalizadas - ainda que possa por outro lado apresentar todo um campo de aptidões criativas, intelectuais e técnicas equivalentes ou maiores do que as do sujeito neuronormativo - ela será patologizada e mobilizar-se-ão todos os recursos pedagógicos, psiquiátricos e tecnológicos disponíveis para normalizar a sua estrutura psico-afectiva, ao ponto da maior aproximação possível à normatividade comportamental, como vivenciada enquanto objectiva e total verdade da corporalidade humana por uma maioria significativa da população, que assim sendo carrega nas suas mãos o poder de ditar da saúde ou não da mente e do comportamento. o mesmo se aplica ao psicopatológico; todos os pontos cegos do corpo de um depressivo podem equivaler a quantos outros sítios de capacidade e potencial na estrutura mental e emocional do sujeito, mas isso não interessa: há que recorrer aos instrumentos disponíveis para desenhar toda uma estratégia interpretativa e terapêutica que, suprimindo todas as particularidades positivas do sujeito, se foquem nas suas falhas e na erradicação das suas divergências do padrão. no encontro da norma com o sujeito neurodiverso e psicodiverso, independentemente das potencialidades alternativas mal-compreendidas do mesmo, será sempre imperativa a correcção, normalização e naturalização das características e das orientações da sua psicofisiologia.

em todas estas instâncias, segue-se da observação de diferenças mais ou menos naturalmente ocorrentes a operacionalização das ferramentas de intervenção sobre o corpo, psique e subjectividade com as quais a tecnologia nos capacita: descobrindo os dados concretos de uma determinada natureza psicofisiológica, respondemos: pois bem: eis os aparatos técnicos de intervenção cultural sobre esses perfis psicofisiológicos que os resolverá: a cultura verte sobre a natureza, está disposta a no extremo a invertê-la, tudo para descobrir como fabricar o humano noutros termos e noutros moldes: os da normalidade. mas toda esta capacidade cirúrgica e correctiva do cultural é subitamente suspensa quando nos deparamos com a problemática da pretensa diferença sexual naturalmente ocorrente. deixemos de parte a completa precariedade e porosidade do binário homem/mulher enquanto facto da biologia humana (pensemos na variedade de combinações cromossomáticas existentes que não XX ou XY; pensemos na proliferação de possibilidades biossociais implicadas pelo fenómeno da interssexualidade; pensemos na forma como a experiência e política trans radicalmente rasgam a fictícia coerência da categoria dita "científica" do "sexo") e finjamos por momentos que acreditamos de facto na credibilidade das categorias de "homem" e "mulher" e na limpeza do corte que as separa. quando proliferam nos media mainstream referências aos mais recentes (sempre recorrentes, sempre rapidamente descredibilizados) estudos científicos sobre as diferenças entre "homens" e "mulheres" - como acontece neste preciso momento, em dezembro de 2013: [1] [2] [3] [4] [5] -, já há questões suficientes a colocar em torno da legitimidade destes estudos, especialmente quando tomando em consideração críticas feministas radicais aos modelos epistemológicos e metodológicos da ciência ocidental enquanto estruturalmente sexistas. entre as questões mais elementares a colocar às conclusões derivadas deses estudos, é o facto de que a própria ciência contemporânea reconhece que as estruturas neurológicas, sendo adaptáveis a contextos experienciais, derivam parcialmente de processos de desenvolvimento e socialização -- ou seja, nada indica que estas divergências físicas não sejam apenas sintomáticas de fenómenos sócio-culturais. mas mesmo assumindo que, independentemente da parcialidade e orientação política problemática dos enquadramentos científicos dominantes, a ciência determina éne diferenças quantificáveis e factuais entre "homens" e "mulheres", absolutamente inquestionáveis e incontornáveis e da ordem do puramente natural, resta uma pergunta que levanta problemas sérios quanto à nossa ética da diferença: o que fazer com essas diferenças?

já há uma resposta implícita e muito ideologicamente ressonante na larga maioria dos discursos dominantes (mediáticos e quotidianos) em torno desta problemática: aceitam-se e afirmam-se essas diferenças. quando a ciência nos indica que "homens" e "mulheres" são diferentes, o patriarcado cissexista respira de alívio: eis que, como sempre esperou, pode de facto confiar na ciência para legitimar as diferenças (leia-se: as discriminações) que socialmente produz, naturalizando-as enquanto sendo de uma ordem precedente à do cultural -- no processo esquecendo por completo que a ciência, sendo sobre o natural, é em si mesma ela própria cultural, e logo, também ela socialmente produzida e também ela precária e contingente nas suas verdades. enfim: o social recorre ao que o social diz sobre o natural para se convencer que o natural falou por si, de forma a que fará finalmente fazer sentido o que o social à partida, e independentemente do natural, já assumira e afirmara sistematicamente. ouroboros da ideologia cissexista. mas o que é mais curioso e significativo nesse suspiro de alívio é que sinaliza o momento em que se dispersa o problema, não aquele em que se descobre a natureza de um. se a ciência fosse capaz de perfilar toda uma tipologia da neurodiversidade que começasse a indexar o que caracteriza, genetica e fisicamente, o autismo ou a esquizofrenia, isso seria o começo de toda uma investigação em como endereçar, compensar, remediar e reequilibrar as diferenças psicofisiológicas em causa. muito pelo contrário, perante um esboço (não temos mais que isso) das divergências neurológicas entre homens e mulheres, a investigação conclui-se. ou seja, se noutras instâncias o perfil da neurodiversidade arranca todo um processo de elaboração técnica e cultural, activando as engrenagens da engenharia social, no que toca à neurodiversidade de ordem sexual, a ciência e a sociedade não tiram ilação maior do que um "pronto, bem suspeitámos", em que se cessa a cadeia interpretativa e técnica. não será necessário recorrer a novos conhecimentos e técnicas de elaboração social -- muito pelo contrário: esta segurança científica virá determinar que no que toca ao "sexo", qualquer projecto de elaboração social (nomeadamente: o projecto feminista e o projecto trans*queer) é completamente irrelevante e impotente, pouco mais do que uma teimosia ignorante.

eis então a contradição-chave. no que toca à neuro- e psiconormatividade, as descobertas científicas procuram determinar as estruturas profundas de diferenças de ordem psicofisiológicas, com o propósito social e político último de encontrar diversos modos sócio-culturais de intervir sobre essas diferenças, entendendo-as em termos de uma contradição lacunar não-complementar, sendo que têm de ser remendadas e compensadas por todos os recursos científicos, técnicos e humanos disponíveis. o conhecimento permite abrir todo um projecto de remendo do sujeito diferente, cujo sonho final seria a rasuração da diferença. muito pelo contrário, no que toca às diferenças neurológicas entre "homens" e "mulheres", as descobertas científicas procuram determinar as estruturas profundas de diferenças de ordem psicofisiológica, com o propósito social e político último de confirmar e legitimar os múltiplos modos sócio-culturais já existentes de inscrever essas diferenças, entendendo-as em termos de uma plena complementaridade mútua, que será assim conhecida e confirmada enquanto natural em todos os planos da experiência humana. o conhecimento potencia a continuação de todo um projecto de aceitação do sujeito diferente, cujo subtexto será sempre a afirmação da diferença. confrontado com o que a ciência tem a dizer sobre diferenças psicofisiológicas entre "homens" e "mulheres", o sistema abana a cabeça sorrindo, conhecendo já tudo o que a ciência agora vem confirmar como sendo já mais que empiricamente evidente no fóro social, e nisso não vê nada de errado. resta perguntar-nos porque que esse mesmo sistema - o sistema do cissexismo, o sistema da neuro- e da psiconormatividade -, não responde com a mesma generosidade e impulso proto-espiritual de afirmação contemplativa da diferença quando deparado com outras diferenças, nomeadamente, as da ordem da tipologia psíquica e neurológica, que são todas sumariamente despachadas e problematizadas no movimento simples e sucinto da patologização, que isola todas as excepções à norma enquanto problemas, situanda-os numa linguagem puramente negativa enquanto questões por resolver pelas capacidades técnicas e científicas que vamos obtendo. uma hipótese de resposta à massiva incoerência deste duplo-padrão quanto à diferença psicofisiológica é imaginar uma sociedade em que finalmente criticamos e circunscrevemos a categoria do "patológico", passando a uma compreensão mais sofisticada, empática e humana da variedade psicofisiológica enquanto parte "natural" (leia-se: boa, positiva e saudável) da malha de multiplicidades que faz o humano.

ou então, sempre podemos seguir pela opção oposta. permitam-me dizer, não tanto como hipótese válida como provocação justificada, que talvez só nos seja sustentável continuar hoje a perpetuar o modelo do neuronormativo versus neuropatológico precisamente se finalmente embarcarmos no projecto de patologizar a diferença sexual, intervindo sobre ela com toda inteligência e energia dos nossos instrumentos de engenharia social, entendendo-a como mais um dos muitos acidentes trágicos de uma natureza que cai aquém dos nossos desejos e capacidades, e que felizmente a técnica nos permite transcender: assim colocada a questão, um dos passos mais cientifica e socialmente significativos que resta tomar será finalmente chegar à conclusão de que a diferença sexual é uma disordem psicofisiológica - com bom remédio nos poderes da ciência.


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