escrito no contexto de um projecto autobiográfico sobre a depressão (daí o parágrafo final).
Leio hoje num site de notícias LGBT que Dinesh Burgha, o novo presidente da Associação Psiquiátrica Mundial, deu uma entrevista ao jornal Guardian em que explicitamente problematizou a história da
instituição psiquiátrica nas suas respostas às mulheres e aos
homossexuais, ao ponto de este pensar que urge que a instituição peça
colectivamente desculpa a estes grupos sociais; reflecte em particular sobre a estória de uma paciente internada aos 16 anos num hospital
psiquiátrico por ter engravidado fora do matrimónio que, mais de
sessenta anos depois, morreu ainda em internamento. Mas esta estória
está claramente no passado remoto da sua carreira; Burgha
responsabiliza criticamente a instituição por este e outros
casos no que toca a pacientes mulheres, e no que toca aos
homossexuais, assume-se publicamente como ele próprio sendo-o,
falando de como mudar-se de um contexto conservador na Índia (país
de origem) para a Inglaterra (onde trabalha) potenciou a sua
identidade e vivência sexual: eis uma cadeia de eventos contentes;
construção implícita de uma narrativa de progresso; tudo se
ilumina e melhora. Aceito que tudo isto são sinais positivos de
determinadas aberturas.
Mas retenho que na notícia original que cita
a entrevista de Burgha com o Guardian, se aponta também que num
estudo de 2009, realizado com 1,328 profissionais da saúde mental
britânicos, se observou que 17% dos mesmos prontamente assumiram ter
incentivado pelo menos um paciente a minimizar a sua atracção por
pessoas do mesmo género. Cerca de 35% dos destes pacientes vieram a
estes profissionais através da referência por médicos de família
e 40% destes pacientes estavam em tratamento no contexto do sistema
nacional de saúde britânico, e não do sistema privado. Sendo
realista, complemento e qualifico estes 17% de profissionais que
prontamente assumiram
ter participado deste abuso homofóbico, tendo em conta que parece
legítima a hipótese de considerar que há toda uma outra série de
profissionais que não
assumiriam prontamente esta prática, pela generalização social de
uma determinada obediência ao código de uma etiqueta não-homofóbica
que tenderá a suprimir actos de fala públicos potencialmente
entendidos enquanto danosos para com sujeitos homossexuais e
bissexuais, ainda que tal atenção ao que é publicamente dizível
seja perfeitamente separável do que acontecerá em contextos
privados - ou na privacidade parcial de um consultório.
Sendo
optimista, tento não expandir demasiado a estatística: imaginemos
que podemos adicionar uns meros 3% de profissionais que participaram
desta prática mas que não estão dispostos a assumi-lo - ou até,
que são incapazes
de o assumir, estando inconscientes
de que o fizeram: mantenhamos em mente que a mecânica do
heterossexismo e da homofobia é em larga parte inconsciente,
silenciosa e invisível, mesmo para os seus próprios perpetuadores.
Estes 3% profissionais adicionais (aproximadamente 40 dos 1,328
sujeitos de partida) perfazem um total de 20% (ou seja, 265.6
profissionais). Com esta minha adição especulativa, coloca-se
portanto a hipótese de que na amostra apresentada, um em cinco
profissionais participariam activamente na repressão da
possibilidade homossexual em pelo menos um dos seus pacientes.
Pelo
menos um: na
notícia lê-se "at least one client" ("pelo
menos um(a) cliente"); não se quantifica, não sabemos qual o
potencial número máximo de pacientes sobre o qual foi infligida
esta repressão terapêutica; tanto quanto conseguimos perceber, o
profissional em causa fez isto a um paciente, a dois, a três, a
quatro, a cinco, a... E que fique claro: há uma diferença entre o
sujeito comum que comunica uma opinião homofóbica, que aplica uma
pressão heterocêntrica, e o praticante psiquiátrico, que comunica
uma verdade homofóbica, cuja pressão é potenciada por todo um
saber-poder institucional. Tendo em conta a fragilidade psíquica que
a sociedade heterossexista causa em muitos sujeitos LGBT, esta
dinâmica é, posto simplesmente, muito, mas mesmo muito grave. E não
quero sequer especular sobre como estes cálculos correriam no
contexto português (sucintamente: não me sinto optimista).
E se
surge toda esta interrogação a partir de um estudo específico
realizado com uma amostra parcial num outro país em particular, de
uma forma que ameaça ficar mal-integrada no resto deste texto, é
porque a preocupação subjacente me é fundamental e percorre tudo o
resto que aqui escrevo: como é que eu, homossexual e umas quantas
outras coisas, posso confiar nesta instituição?
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