entrevista a beatriz preciado & judith
butler. [parte 2]:
a micro-revolução // oikos & ecologias // putas & cadelas
// machos dominantes // categorias actuantes // homens grávidos //
técnicas & disciplinas // “orgãos tecno-vivos” // a pílula
segunda parte: a utopia “testo yonqui”
O teu livro, Testo Yonqui, é
uma utopia libertadora dos géneros e das sexualidades, e também do
resultado nihilista de uma época desastrosa para a ecologia. Como
pode no entanto a revolução ser realizável hoje em dia?
Beatriz Preciado: Não concebo a revolução
sob a forma viril da luta, da transformação heróica. Para mim, a
revolução é o que está no domínio do possível, unicamente nos
micro-actos. Esta forma de micro-revolução é possível. Depois
disso, a pergunta final é como sobreviver no mundo de guerra total
no qual vivemos. Precisamos de uma nova política de experimentação
e não unicamente esta de representação. Eu milito por uma
“Propaganda for Queer Fucking”. Esta micro-revolução dá-se nos
corpos, na experimentação, no sexo, no prazer, no consumo de
drogas. Hoje em dia, depois de Judith Butler e Donna Haraway, deve
pensar-se de nova forma na noção do oikos, da casa, que é o
corpo, o corpo mundial e da terra; é por isso que precisamos de um
novo feminismo. E é verdade que o meu livro é também, talvez, um
luto pelo planeta, porque ecologicamente, o estado das coisas é
muito alarmante.
Em Testo Yonqui, as mulheres são chamadas de
“putas”, “cadelas”. Não estarás a agir um pouco como a
“machotransfufa”?
Beatriz Preciado: Quando digo “puta” ou
“cadela” não falo de modo algum de todas as mulheres, mas sim de
algumas raparigas com as quais fodi. E foram elas que me ensinaram a
chamá-las isso. Como podes imaginar, quando chamo a Virginie
Despentes a minha “cadela”, isso é porque ela está totalmente
de acordo... Quando uma mulher fala da sexualidade de forma crua, ela
é vista como masculina. Aqui, não se trata para mim de uma figura
retórica, é isso sim uma forma de ocupar o espaço público, e já
que te está totalmente proibído escrever dessa forma quando és
mulher, quando te reaproprias destes códigos na linguagem, estás a
gerar uma violência, e eu, eu reinvidico essa linguagem! E depois,
as mulheres das quais falo tomam o insulto nas suas próprias mãos
numa lógica de empoderamento, isso que a Judith descreve como o
deslocar da injúria que altera o sujeito da enunciação, que já
não é mais uma vítima. Por isso prefiro “cadela” a “vítima”
para designar as mulheres. A Judith mostra bem que as noções
políticas com as quais trabalhamos vêm do discurso político e
jurídico; devemos trabalhar continuamente com noções que são
ferramentas de normalização; esta tensão está sempre presente. Tu
não podes fazer uma política completamente pura, há sempre um
momento em que podes ser lido de forma diferente. O que acontece
quando uma mulher se apropria dos códigos da masculinidade? Gostaria
que todos os verdadeiros machos viessem workshops de drag king,
fodessem com as mulheres com as quais eu fodo, viessem aos cursos da
Judith: já não seriam mais machos.
Judith, que pensas tu destes termos?
Judith Butler: Muita gente aprisiona-se a si
própria em todas estas categorias de butch, femme, lipstick,
macho... Para quê? Elas continuam a actuar sobre nós
constantemente, mas a pergunta interessante seria ver como actuamos
com elas de uma maneira que não fizesse de nós nem vítimas, nem
aprisionadas. Aposto que a Beatriz e eu temos oferecido um novo
destino sexual a todas as feministas que desejam uma relação sexual
com o macho dominante, mas que não suportam a subordinação social
aos homens. O importante é não deixar os homens acreditarem que
possuem plenamente a masculinidade. Mas se continua a ser pertinente
falar em dominação masculina, o que é problemático é quando se
pensa que a dominação é o que caracteriza a masculinidade. Um
macho, no estereótipo, é qualquer pessoa que seja incapaz de se
confrontar com a sua própria femininidade.
Falemos da actualidade. Thomas Beatie, um
transexual americano “Female to Male”, deu à luz uma bebé,
este Verão. A sua gravidez foi apresentada pelos media como a do
“primeiro homem grávido”. Thomas Beatie nasceu como rapariga. No
seu processo de mudança de sexo, tomou testosterona e realizou uma
mastectomia. Eles queriam um rapaz, ele e a sua companheira. No
entanto, ela tinha realizado uma histerectomía e não podia
engravidar. Thomas, por sua vez, teve sempre o seu útero de origem,
e por isso decidiu ter o bebé. Como lêem esta gravidez na era da
reprodução cada vez mais biotecnológica?
Judith Butler: Para ficar grávida, devo ter
certas funções reproductivas operacionais, mas também certas
técnicas. Não basta ter um aparelho reproductivo biologicamente
feminino. A reprodução pode ser o resultado de uma relação
heterossexual, de uma inseminação ou de uma doação de gâmetas.
Algumas mulheres têm as funções reprodutoras, mas não são
capazes de ficar grávidas sem uma intervenção técnica. Há sempre
técnica, em todo o lado; não há relação sexual hetero ou homo
sem techné, a pornografia é uma técnica. A outra é uma técnica:
utiliza-me, faz de mim o teu instrumento de prazer, é isto o que é
uma relação sexual... Caso contrário, nunca cederíamos! (Risos.)
Beatriz Preciado: Não é o primeiro
transexual grávido. Matt Rice, um FTM americano, teve uma filha mas
não o mediatizou. O que é interessante é a publicidade em torno
desta maternidade. Foram de certo modo os media quem tornou possível
a reprodução de Beatie. Se conseguiu ficar “grávido”, é
porque decidiu rejeitar a ablação dos ovários que acompanha o
protocolo da mudança de sexo. Porque é necessário, para que a
heterossexualidade continue a apresentar-se como o quadro natural no
qual ocorre a gravidez, tornar infértil o sujeito ou o corpo
trassexual. Beatie prova que o corpo é um campo de multiplicidade
aberto à transformação; o seu corpo não é nem masculino nem
feminino, é um campo de implantação técnica no qual podem
acontecer múltiplas coisas. Esta complexidade de técnicas aqui
ligadas à reprodução mostra que os nossos corpos são, no final de
contas, órgãos tecno-vivos e não umas matérias-primas ou orgãos
puramente biológicos, independentes da linguagem, das metáforas,
dos discursos. Há já muito tempo: no mundo industrializado, na era
da pílula, da foda hetero programada por Hollywood e pela
pornografia dominante, nenhuma gravidez é natural. No final dos anos
60, havia cerca de dez milhões de consumidoras da pílula; era a
primeira vez que um medicamento era prescrito sem que houvesse uma
doença, e esta prescrição significa que o corpo feminino é
disciplinado para ser maternal. Thomas Beatie é denunciado como
anti-natural, mas não foi mais que uma possibilidade entre milhares
de casos assistidos pela técnica, e o risco é de que isto se torne
cada vez mais frequente.
[parte
3]:
“cidadãos respeitáveis” // o cárcere // língua, pensamento,
poesia // técnicas de resistência // glossário
última parte: as técnicas do sujeito
Outro ponto muito importante da actualidade
americana: na Califórnia, o casamento acaba de ser legalmente aberto
aos gays e às lésbicas. O que pensam disto?
Judith Butler: É uma boa notícia, a
instituição do casamento devia existir para todos,
independentemente da orientação sexual. É só um problema de
igualdade no quadro liberal e do ponto de vista dos direitos
individuais. Mas não é suficiente. Não sei porque é que a
instituição do casamento deve interessar apenas a duas pessoas. E é
preciso não esquecer que a instituição do casamento controla
outros direitos (a nacionalidade, o direito sobre a propriedade, a
visita ao/à teu/tua parceir@ no hospital), e por isso, é
preocupante. O movimento pró-casamento nasceu como resposta à crise
da SIDA, sendo o seu objectivo transformar os homossexuais em
cidadãos respeitáveis. Mas também é muito importante separar a
possibilidade de contratualizar uma união – a possibilidade de nos
casarmos – da parentalidade. O que me perturba é que o movimento
gay tornou-se muito conservador, centrado nos direitos individuais e
na propriedade privada. E isto incomoda-me. A minha namorada, que é
marxista, também me avisou logo: se eu me casar com ela, ela pedirá
o divórcio!
Mais recentemente, trabalhaste sobre a guerra, a
tortura em Guantánamo e sobre o que define o humano nesse contexto.
Se sou torturada numa prisão, por exemplo, a minha consciência pode
ainda assim preservar-se. Podemos dizer que isso é o que resta de
mim?
Judith Butler: Imaginemos
que estou na prisão, isolada, numa posição que vá contra a minha
vontade. Queremos saber se há algo de intocável no ser humano, algo
que possa escapar a este poder coercivo que faz com que eu não seja
livre. A pergunta será acima, de tudo: quais são os recursos do
sujeito que permitem resistir a uma dominação total? Na filosofia,
tradicionalmente, pensa-se que só as técnicas de resistência do
sujeito lhe pertencem ou estão “nele”. Isto é uma suposição
metafísica e é um obstáculo ao pensar o problema da resistência.
Talvez eu seja capaz de resistir pelos recursos linguísticos que me
foram transmitidos. Ou por outras palavras, a língua, o pensamento,
a poesia são recursos que me formam, que me estruturam, e sem estes
recursos culturais, eu não conseguiria mobilizar nenhuma dessas
técnicas de resistência para sobreviver. A pergunta será afinal: é
um Eu o que resiste ou trata-se de um agenciamento de recursos
através do qual passa a existir uma resistência? Alguns
prisioneiros de Guantánamo escreveram poemas para resistir. Quando
se lêem os seus poemas, vemos os traços da sua cultura poética que
reuniram para se mobilizarem contra o poder estatal. A pergunta
fundamental será então: como é que o agenciamento das técnicas do
sujeito possibilita a sobrevivência? Não peguemos no problema
perguntando-nos que liberdade resta ao sujeito, mas antes, e mais
correctamente, como é que a resistência é possível? Não se pode
separar os sujeitos das técnicas que os deixam sobreviver; se lhes
tiras estas técnicas, não há mais sobrevivência. A verdadeira
pergunta é: sob que condições pode um Eu falar?
as palavras de
preciado
Micropolíticas queer:
designa as novas estratégias de resistência para desconstruir o
mundo baseado na heterossexualidade dominante. Elas consistem em
experimentar, sobre * própri* e com * outr*, o género ou o corpo
que se deseja, tomando hormonas ou drogas, ou travestindo-se.
Potentia gaudendi:
capacidade de um corpo de se vir, mas que determina também a sua
capacidade de mudar o mundo. É também a mão-de-obra do capitalismo
farmacopornográfico.
Tecno-género: a
medicina está na origem do género. Quem o criou? Nos anos 1940, a
medicina decidiu do género dos bebés interssexuais
(“hermafroditas”); segue-se que de certa forma, ela produz
tecnica e medicamente uma diferença sexual à qual não restará a
partir de então nada de natural.
Testosterona:
hormona masculina que a autora administrou no seu próprio corpo, na
forma de um gel.
Virginologia:
doutrina que celebra a perfeição metafísica de Virginie Despentes,
na medida em que ela é a mais pornográfica e a mais feminista das
mulheres.
*
-- Revista Têtu, nº 138 (Nov. 2008)
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