entrevista a beatriz preciado & judith
butler. [parte
1]:
o impasse feminista // “uma boa dose de psicadelismo hedonista
micropolítico” // santo foucault // guillaume dustan //
materialidades da fala // “testo yonqui” // do biopoder à
farmacopornografia // “potentia gaudendi” // melancolia de género
primeira parte: o novo sujeito da revolução
O feminismo estava num
impasse. É a opinião de Judith Butler, filosófofa e principal
responsável pela origem das teorias queer, mas também a de Beatriz
Preciado, que abre o seu livro Testo Yonqui perguntando-se:
“Que género de feminista sou eu hoje, uma feminista viciada na
testosterona, ou um transgénero viciado no feminismo?” Não serve
de nada aprofundar todos os dias e ainda mais a denúncia perpétua
das desigualdades de que as mulheres são vítimas, se não se
analisar a própria matéria da identidade enquanto “mulheres”
que as aprisiona. Na sua estreia em 1990, também interessava a
Butler a realidade do género, sempre problematizada (no seu famoso
Gender Trobule), no prisma das
homossexualidades.
Para ela, o corpo é uma construção. É isso que
Preciado põe em prática: “Nenhum dos sexos que eu encarno possui
densidade ontológica e não há outra forma de se ser um corpo.
Despossessão desde a origem”. No seu livro, ela relata a sua
experiência com tomar testosterona, faz o luto do seu amigo
Guillaume Dustani
- “último representante francês de uma forma de insurreição
sexual através da escrita” – e encontra V. D. (Virginie
Despentesii),
a sua “puta” cujo “sexo fala a língua da revolução”. Neste
“ensaio corporal”, manual de bioterrorismo romanticó-punk de
linguagem violenta, erudita e cheia de fervor, Beatriz Preciado
reflecte sobre o seu corpo, sobre as suas (novas) hormonas e sobre os
seus dildos. Para Butler, a primeira, e para Preciado, que segue a
mesma filiação teórica (Foucault, Deleuze, Guattari, Wittig,
Haraway), as identidades homossexuais são subversivas e
necessariamente problemáticas porque elas dinamitam a ordem
heterossexual enquanto regime político articulado à reprodução. É
o corpo na sua materialidade, nos seus géneros e nas suas múltiplas
cadeias discursivas, fisiológicas e e ainda políticas, de um ADN
mutante que é preciso descodificar.
Mais globalmente, para as duas filósofas, já não
há o sujeito cartesiano, o Eu. Apenas essas técnicas, esses
recursos, essas experiências, políticas, sexuais ou linguísticas
que constituem a subjectividade do sujeito político. Os discursos
têm uma materalidade, uma corporealidade, carne; como disse John
Austin: “dizer é fazer”. São por isso eles que fabricam o
indivíduo. Reciprocamente, o corpo constitui-se também com o
discurso, o de Preciado ainda mais particularmente, porque ela
inscreveu nele, através da sua experiência, uma verdade singular
mas que tem valor universal: “O meu género não pertence nem ao
feminismo, nem à comunidade lésbica, nem à teoria queer. É
preciso retirar-se o género das mãos do macro-discurso e dilui-lo
numa boa dose de psicadelismo hedonista micropolítico.” Eis o novo
sujeito da revolução.
Beatriz, de onde vem a tua obsessão filosófica
com o corpo?
Beatriz Preciado: Na altura em que estive num
departamento de arquitectura, estudei com Derrida e publiquei o meu
primeiro livro, que foi sobre dildos, o Manifesto Contra-sexual,
através da Balland, numa colecção editada pelo Guillaume Dustan.
Estava obcecada com o problema do corpo e da sua materialidade, e
surpreendi-me muito ao descobrir a análise performativa da
identidade realizada por Butler. A sua análise alterou radicalmente
a minha maneira de pensar os géneros e a sexualidade. O que eu quis
desde o início era pegar nessa análise e levá-la ao campo da
corporalidade. Comecei a tomar testosterona e quis fazer um livro
sobre a genealogia política das hormonas, a partir da obra da Judith
e da de Foucault. Tratava-se de mostrar como passámos para um novo
regime de controlo e de produção do género e da sexualidade.
Porque quiseste experimentar a testosterona e
contar estas experiência em Testo Yonqui?
Beatriz Preciado: Na minha geração, ao
contrário da de Butler, a testosterona foi introduzida brutalmente
nos grupos gays e lésbicos e trans de tendência anarquista. Em
Espanha, todos os meus amigos começaram a tomá-la. Eu sempre
consumi drogas, então queria experimentar a testosterona, mas ao
mesmo tempo não queria mudar de sexo e assinar um contracto de
transformação sexual com o Estado, que é o processo comum dos
transexuais. Muitos pensavam que eu ia converter-me num homem
instantaneamente. Como se a hormona portasse a masculinidade em si.
Politicamente, de facto, as hormonas são um sistema de comunicação,
de circulação; são uma forma de contaminação viral. Tomei o meu
corpo como um território de experimentação. A partir daí,
tratou-se de um estilo de “auto-ficção”, mas não no sentido
que se lhe dá hoje em dia, a do pequeno Eu, confinado ao privado. O
corpo tem um espaço de extrema densidade política, e é o corpo da
multiplicidade. É o universal no particular. Mas hoje em dia cresce
a rejeição do enquadramento médico e psiquiátrico, a partir do
qual até agora se definia a transexualidade. Trata-se de resistir à
normalização da masculinidade e da femininidade nos nossos corpos,
e de inventar outras formas de prazer e de viver em conjunto.
Judith Butler: O que é importante é o
discurso que se está a formar à volta das hormonas e o poder que
lhes é atribuído. Falamos como se de algo interno que nos afecta e
que se expressa nas nossas acções, sobre as quais não teríamos
qualquer controlo: “Lamento, é o estrogéneo; não é o
meu cogito, mas sim as minhas hormonas”; é algo que se ouve
frequentemente. Ora, claro que há algo de verdade neste discurso,
mas a verdadeira pergunta é como ele foi constituído enquanto
verdade. As hormonas produzem sempre uma situação fisiológica, mas
elas são sempre interpretadas, consciente ou inconscientemente, e as
crenças quanto à hormona “masculina”, a testosterona, são
ilustrativas.
Hoje em dia ainda tomas testosterona?
Beatriz Preciado: Continuo a fazê-lo de
forma esporádica, em momentos muito distanciados uns dos outros.
Para mim, a testosterona é uma droga sexual. Não creio na verdade
do sexo, nem masculino, nem feminino. Nem com a testosterona, nem sem
ela. O sexo e o género produzem-se na relação com os outros. Como
a Judith demonstrou, é uma questão de actos.
Como se passa do conceito de biopoder de Foucault
ao farmacopoder ou farmacopornografia?
Beatriz Preciado: Foucault fez uma análise
muito interessante da produção de identidades no século XIX pelo
discurso médico, pela lei e também pelas instituições de
reclusão. Estas arquitecturas externas foram controlando, regulando,
disciplinando, medindo a vida ou biopoder. Isto foi o que permitiu
uma compreensão extremamente precisa do momento em que a identidade
sexual foi inventada. Mas também sempre me fez confusão o facto de
Foucault nunca ter realizado uma arqueologia do presente, do corpo
gay e lésbico ou da normalização da sexualidade contemporânea,
sendo que ele conheceu o feminismo e os começos do mundo gay e
lésbico, os Estados Unidos, São Francisco. Penso que era muito
complicado para um intelectual gay ter um discurso na primeira pessoa
nos anos 70. A sua análise teria perdido credibilidade. Ele falou
muito pouco sobre as técnicas contemporâneas de produção das
identidades, como o cinema, a fotografia, os discursos de comunicação
de massa, e não disse absolutamente nada sobre a pornografia
(tirando a do século XVIII). O meu objectivo era cruzar a análise
performativa de Judith com a arqueologia crítica dos dispositivos
disciplinares de Foucault, e levá-los para o território do corpo, e
das tecnologias bioquímicas e pornográficas. Aqui, entramos na
questão do farmacopoder. A partir dos anos 40, o biopoder toma a
forma do regime farmacopornográfico, segundo a minha interpretação.
O regime disciplinar que coincide com o aparecimento do capitalismo
industrial baseava-se na repressão da masturbação. Basicamente, a
masturbação era um desperdício de energia por não servir a lógica
de continuidade entre o sexo e a reprodução da espécie. Assim
sendo, para vigiar o corpo, as técnicas de controlo miniaturizam-se
depois da Segunda Guerra Mundial; com a invenção das hormonas, as
técnicas de controlo tornam-se interiores. Já não é necessário o
hospital, o quartel, a prisão, porque agora o próprio corpo foi
convertido num território de vigilância, na ferramenta definitiva.
O que está a acontecer quando se toma testosterona ou a pílula?
Engole-se uma cadeia de signos culturais, uma metáfora política que
comporta uma definição performativa de construção do género e da
sexualidade. O género, feminino ou masculino, aparece com a
invenção das moléculas. A seguir, e muito rapidamente, a
pornografia estabelece-se como nova cultura de massas e a masturbação
volta a ser uma alavanca de produção do capital. A mão, que não
tinha um género, tal como o ânus, é agora potentia gaudendi ou
força orgásmica, um utensílio de produção.
Judith, tu analisaste a melancolia de género no
teu trabalho. Encontras esse fenómeno no livro de Beatriz?
Judith Butler: Alguns psicanalistas dizem que
no seu livro a Beatriz se imagina toda-poderosa, megalómana,
ocupando todos os lugares. Mas o que eu acho muito interessante é
que ela nos convida a um campo de experimentação entre dois
extremos que são, de um lado, a sua posição, e do outro, aquela da
diferença sexual defendida pelos analistas. O que é perigoso, é
pensar que a masculinidade é uma coisa bem-delimitada e a
femininidade outra, e que ambas não podem ser senão assim. Também,
a melancolia da qual falo aparece sobretudo na formação de
identidades rígidas. Se eu exclamo, de punho no ar: “Eu sou
homossexual!”, ou outra coisa qualquer, se a minha identidade é
convertida numa coisa que afirmo, que devo defender, então há
rigidez. O que é esta necessidade de nos fixarmos de uma vez por
todas? Como se eu conhecesse o meu futuro, como se eu pudesse ser um
todo contínuo! Existem formações identitárias que se defendem de
sentir qualquer perda, e esta é a melancolia do sujeito homossexual
que me interessa. Tomemos certas formas de hiper-masculinidade ou de
hiper-femininidade na cultura heterossexual; elas têm um certo ar
queer (performativo), porque são hiperbólicas. Um homem, por
exemplo, que tenham medo de ter em si o mínimo traço de
femininidade, e que viva perseguindo esses traços. No mundo gay e
lésbico também pode haver uma certa “polícia da identidade”.
Como se, enquanto lésbica, não serei nunca senão lésbica, não
terão sonhos senão lésbicos, não terei fantasias senão com
mulheres. A vida não é a identidade! A vida resiste a esta ideia de
identidade; é preciso dar espaço à ambiguidade. Muitas vezes a
identidade pode ser vital para confrontar uma situação de opressão,
mas seria um erro utilizá-la para não confrontar a complexidade.
Não se pode saturar a vida com a identidade.
Beatriz Preciado: Comecei o livro com um
luto, o da morte de Guillaume [Dustan], e hoje em dia, faço o luto
da identidade; nunca serei verdadeiramente lésbica, nunca serei
verdadeiramente transexual, e esse luto é realmente libertador.
Podia ter decidido não tomar testosterona, mas isso teria sido
melancólico. A questão é como fazer um luto da política de
identidade.
-- Revista Têtu, nº 138 (Nov. 2008)
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i Escritor
e jornalista francês, assumidamente gay, notório pelo seu trabalho
em prosa experimental de cariz principalmente autobiográfico e
pelas suas políticas sexuais explícitas e polémicas - incluindo a
promoção de práticas de barebacking (sexo anal desprotegido).
Tornou-se conhecido com "Dans Ma Chambre" (ed. POL, 1996),
uma espécie de diário dos seus encontros sexuais, que é um livro do caraças, mesmo.
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