28.11.13

desconfianças: psiquiatria & homossexualidade

escrito no contexto de um projecto autobiográfico sobre a depressão (daí o parágrafo final).

Leio hoje num site de notícias LGBT que Dinesh Burgha, o novo presidente da Associação Psiquiátrica Mundial, deu uma entrevista ao jornal Guardian em que explicitamente problematizou a história da instituição psiquiátrica nas suas respostas às mulheres e aos homossexuais, ao ponto de este pensar que urge que a instituição peça colectivamente desculpa a estes grupos sociais; reflecte em particular sobre a estória de uma paciente internada aos 16 anos num hospital psiquiátrico por ter engravidado fora do matrimónio que, mais de sessenta anos depois, morreu ainda em internamento. Mas esta estória está claramente no passado remoto da sua carreira; Burgha responsabiliza criticamente a instituição por este e outros casos no que toca a pacientes mulheres, e no que toca aos homossexuais, assume-se publicamente como ele próprio sendo-o, falando de como mudar-se de um contexto conservador na Índia (país de origem) para a Inglaterra (onde trabalha) potenciou a sua identidade e vivência sexual: eis uma cadeia de eventos contentes; construção implícita de uma narrativa de progresso; tudo se ilumina e melhora. Aceito que tudo isto são sinais positivos de determinadas aberturas. 

Mas retenho que na notícia original que cita a entrevista de Burgha com o Guardian, se aponta também que num estudo de 2009, realizado com 1,328 profissionais da saúde mental britânicos, se observou que 17% dos mesmos prontamente assumiram ter incentivado pelo menos um paciente a minimizar a sua atracção por pessoas do mesmo género. Cerca de 35% dos destes pacientes vieram a estes profissionais através da referência por médicos de família e 40% destes pacientes estavam em tratamento no contexto do sistema nacional de saúde britânico, e não do sistema privado. Sendo realista, complemento e qualifico estes 17% de profissionais que prontamente assumiram ter participado deste abuso homofóbico, tendo em conta que parece legítima a hipótese de considerar que há toda uma outra série de profissionais que não assumiriam prontamente esta prática, pela generalização social de uma determinada obediência ao código de uma etiqueta não-homofóbica que tenderá a suprimir actos de fala públicos potencialmente entendidos enquanto danosos para com sujeitos homossexuais e bissexuais, ainda que tal atenção ao que é publicamente dizível seja perfeitamente separável do que acontecerá em contextos privados - ou na privacidade parcial de um consultório. 

Sendo optimista, tento não expandir demasiado a estatística: imaginemos que podemos adicionar uns meros 3% de profissionais que participaram desta prática mas que não estão dispostos a assumi-lo - ou até, que são incapazes de o assumir, estando inconscientes de que o fizeram: mantenhamos em mente que a mecânica do heterossexismo e da homofobia é em larga parte inconsciente, silenciosa e invisível, mesmo para os seus próprios perpetuadores. Estes 3% profissionais adicionais (aproximadamente 40 dos 1,328 sujeitos de partida) perfazem um total de 20% (ou seja, 265.6 profissionais). Com esta minha adição especulativa, coloca-se portanto a hipótese de que na amostra apresentada, um em cinco profissionais participariam activamente na repressão da possibilidade homossexual em pelo menos um dos seus pacientes. 

Pelo menos um: na notícia lê-se "at least one client" ("pelo menos um(a) cliente"); não se quantifica, não sabemos qual o potencial número máximo de pacientes sobre o qual foi infligida esta repressão terapêutica; tanto quanto conseguimos perceber, o profissional em causa fez isto a um paciente, a dois, a três, a quatro, a cinco, a... E que fique claro: há uma diferença entre o sujeito comum que comunica uma opinião homofóbica, que aplica uma pressão heterocêntrica, e o praticante psiquiátrico, que comunica uma verdade homofóbica, cuja pressão é potenciada por todo um saber-poder institucional. Tendo em conta a fragilidade psíquica que a sociedade heterossexista causa em muitos sujeitos LGBT, esta dinâmica é, posto simplesmente, muito, mas mesmo muito grave. E não quero sequer especular sobre como estes cálculos correriam no contexto português (sucintamente: não me sinto optimista). 

E se surge toda esta interrogação a partir de um estudo específico realizado com uma amostra parcial num outro país em particular, de uma forma que ameaça ficar mal-integrada no resto deste texto, é porque a preocupação subjacente me é fundamental e percorre tudo o resto que aqui escrevo: como é que eu, homossexual e umas quantas outras coisas, posso confiar nesta instituição?


Sem comentários: