18.11.13

rapazes, rapazes, rapazes



imagens: Daryl Vocat, "Playing The Game".

1.

os rapazes são as criaturas mais estranhas do mundo.

2.

estrutura corporal: substância sólida - geometria euclidiana levada à letra do osso - membros matematizados - pele matizada de lógica - linha limpa de a) a b), de b) a c) - subordinação das partes ao encaixe estrutural do conjunto - e o conjunto ultrapassando sempre as partes - qualquer coisa como uma problemática opressiva de simetria - censura da espinha disforme e da língua distópica - e mais, e menos - e eu a sentir que me é proibida a figura de partir os meus punhos ao flectir os pulsos ao ponto do parvo: problema paneleiro? - porque sim: as chaves de um rapaz são a maçã-de-Adão, a picha, e os punhos.

3.

os rapazes fazem História: no fazer dos fluxos do acontecer social, emergem corpos catalisadores que ou são corpos-homens, ou são como corpos-homens, ou não o são sequer mas serão ainda assim acusados de quererem ser corpos-homens. o capital histórico está nas mãos de um rapaz na medida em que ele tem direito a um Nome; a sua acção acontece em maiúsculas e corta através do colectivo para constituir a singularidade do corpo e do gesto. esta não é a singularidade de uma individualidade característica de qualquer um; esta singularidade indexa que há Singulares e há Colectivos: que certos corpos existem, e outros corpos esperam por eles; que certos corpos têm nome, e outros corpos os nomeiam e namoram. com alguma sorte ainda nos descobrimos insensíveis o suficiente à categoria do Indivíduo (categoria anexa: a História; categoria anexa: o Nome) para não acreditarmos mais em heróis; massacraríamos um dos pilares sacros da masculinidade ortodoxa (heróica) se soubéssemos redistribuir e anonimizar .

4.

um beco e um palácio são a extensão de um corpo de um rapaz. uma rua é uma veia de um homem a dobrar-se tenso sobre a terra; um passo nela é uma pulsação na história masculina do mundo; uma queda nela é perder algo no fluxo sanguíneo de uma opacidade corporal que só um rapaz pode querer vir a aprender completamente. a metáfora da terra-mãe é mentira; a rosa-dos-ventos aponta mar fora partidas patrilineares. basta ouvir o nome mais à letra para saber que a "pátria" nunca nos foi uma mulher; basta olhar com atenção para perceber que a arquitectura fascista é a projecção no espaço do corpo de um homem perfeito - para lá de qualquer substância líquida ou lábil, para lá de qualquer curvatura do afecto. e na verdade a praça é como a pátria: tem nome de rapaz e só responde a quem tem como ela tal nome. o espaço público é um rapaz, como o rapaz é um espaço público. e como são as únicas criaturas públicas fabricadas pela História que fabricam, os rapazes fazem-política; engrossam as vistas e engrossam as vozes: compensação fálica ad nauseam de a-minha-política-é-maior-que-a-tua: um rapaz tem a picha tão grande quanto for a sua opinião, tão pesada quanto for a sua pressão sobre uma perspectiva. nota: dá para aliterar pau, opinião e pátria.

5.

como um rapaz é sólido e não líquido i, um rapaz não pode chorar. isto é das violências mais importantes que se faz sobre um rapaz e isto é das condições maiores para o fazer da violência que um rapaz inflige no mundo. como um rapaz não tem a opção de se deixar ser líquido (um corpo sólido não verte), um corpo-rapaz não tem relação com a diluição, só com a destruição; o único estado em si oposto ao seu ser-sólido é o seu destruir e o seu ser-destruído. a masculinidade não comporta mudanças de fase. um corpo-rapaz ou é sólido e seco ou está mudo e morto. e não, não é que seja preciso chorar – interessa-me pouco impor uma normatividade da vulnerabilidade -, mas poder-chorar é tão importante quanto poder-tudo.

6.

e visto que não choram, os rapazes têm vistas invencíveis: a invenção do microscópio é a instrumentalização de um olhar ao ponto da sua objectificação e subsequente empoderamento enquanto objectivo objectificador; a linha infinita do telescópio é a resposta de luto quanto ao triste facto de a esporra fazer um arco para baixo devido à força anti-masculina da gravidade que impede a ascensão vertical indefinida do ser-corpo masculino. os rapazes inventaram uma ciência com os seus corpos invisíveis por e para não conhecerem os seus corpos. inventaram a arte de dizer “O Mundo É Assim” e destruíram toda a possibilidade no processo, arruinaram tudo e cortaram-nos a vida aos pedaços. ii porque todas as estórias assim contadas são estruturadas no desaparecimento da pele, na proibição da potência epistemológica do prazer, no achatamento do globo ocular - a terra é redonda, mas a vista é plana. um rapaz estende o corpo para cobrir todos os continentes, mas nunca fala a partir desse corpo trans-continental. não têm oralidade, não têm a órbita do gozo como mecanismo de conhecimento do mundo; vistas invencíveis, versões invisíveis.



7.

corpos populados de proibições: tabus do toque: se um rapaz suaviza demasiado os seus calores num abraço a outro, o mundo desagrega. mas isto à parte os rapazes são os especialistas mundiais na criação oportunista do máximo de instâncias possíveis para porem os seus corpos em contacto entre si. estão dispostos a dar socos uns nos outros pelos tesões sorrateiros e serpentinos que lhes emergem na parte de trás do cérebro; uma das pequenas vitórias que preservam contra as suas repressões são essas formas de tumescência na amígdala. digo isto sem crueldade. minto: digo isto com pouca crueldade.

8.

conto-vos uma estória: um rapaz despe-se à beira de um rio e mergulha. há outro rapaz já dentro do rio. quando olham um para o outro debaixo de água, os olhos são recalibrados pelo aquático ao ponto da suspensão de todo o social. nesse momento descobrem-se as partilhas entre estar molhado e olhar para o corpo de um rapaz, entre estar despido e as possibilidades da terra. quando se sai da água tudo se repõe. ou quando se sai de água tudo se decompõe. acontecem coisas no espectro de um báque e de um beijo. um rapaz tem momentos luminosos e desfeitos; um rapaz tem momentos laterais e suspeitos. as raposas sabem bem os factos-chave da masculinidade, as clareiras conhecem bem o que é um acidente nocturno, os troncos segregam segredos: coeva a tudo, a seiva é o único facto histórico de confiança. e isto acontece desde sempre.

9.

criaturas de contradição cruel que eu quero sei lá como. contradição: porque também: se matam mais e morrem mais - vêem o corpo rompido sem qualquer testemunho - compartimentalizam o cérebro ao ponto da quebra - perdem sempre a própria perda - rasgam a pele para fazer guerra - sobrevivem ao fascismo de um ângulo recto - competem pela competência, ao ponto do absurdo - convertem o corpo contente em capital concreto - fazem luto constante pelos lábios uns dos outros - destroem-se tão completa e perfeitamente quanto outro corpo qualquer - etc.

10.

às vezes a esporra de um rapaz navega o éter do anonimato e impregna (ser pai é sempre anónimo). às vezes disso deriva um outro rapaz. se o primeiro rapaz abraça o segundo rapaz, habilita-se a destruir os centros gravitacionais de ambos ou de os hiper-intensificar, puxando-os para baixo para a terra molhada (pertença da mãe). se o primeiro rapaz beijar o segundo rapaz na testa pode descobrir que todo o canto é novo ou que o mundo foi coberto de cinza ou ambos. abraçando ou beijando, o primeiro rapaz habilita-se quer a descobrir que tem pele, quer a destruir completamente o cosmos, e é uma questão de puro acaso. ou se descobre tão analfabeto quanto o rapaz zero e o rapaz menos um e a cadeia infinita que o precede, ou permite germinar qualquer coisa no peito e na barriga, no colo de um útero inexistente e num coração: nunca se sabe. eu não sei; posso vir a ser um primeiro rapaz mas nunca fui nem serei o segundo; a minha mãe foi impregnada pela orelha, por um silêncio e um susto.

11.

não tenho pai mas tenho avô. o meu avô é, sei lá, o meu avô é austero, árido, uma oração à autoridade sem ornamento, sem autoria alguma de uma figura que exceda a função. a pior parte do poder de um patriarca é que não tem estética. há poucas coisas mais graves que a sobriedade (a anti-estética) e nesta cultura punimos os pais pedindo-lhes que sejam, acima de todo, sóbrios: a mamã abre a saia que expande infinitamente para eu me recolher nas flores do tecido e perder-me um bom tempo quente e bem e o pai volta a casa preocupado, corta o não-sentido: recoloca sisudo o sentido. num corpo-patriarca não folgam os ares; o riso é uma profunda improbabilidade mecânica que mais parece um chiar na disfunção das engrenagens do que a vaporosidade bem-vinda de um corpo dobrar sobre si próprio através da sua existência no espaço: mais que a voz, ser-pai é grave. antes ser rapaz.

12.

antes ser rapaz. estas doze notas são como medos para cada mês do ano. sei lá, ser rapaz parece-me só mais possível; já aqui o escrevi: "se eu um dia for um homem, vou ser o contrário de uma mulher; por outro lado, se eu por agora (ou para sempre) conseguir ser só um rapaz, então sim, se calhar sou o contrário de uma rapariga, mas acima de tudo sou certamente o contrário de um homem também." se for um certo tipo de rapaz, se for um certo de tipo de não-rapaz: aprendo uma destruição na diluição - aprendo a ser molhado; aprendo a fazer desaparecer o punho e o poder - sempre paneleiro e não patriarca; aprendo a poluição da linha - o limite da pátria; aprendo a ser um rapaz que verte - aprendo uma versão improvável; aprendo a deixar-me ser visto - e a ver o que me diz de novo a seiva.





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i nem gasoso; há outros corpos, raramente cis, esses sim gasosos – mas isso fica para outra altura.
ii este parágrafo em particular – e quase tudo o que de mais impressionista aqui se diz sobre o corpo, estados físicos & geometria – deve muito ou tudo ao trabalho de Donna Haraway, Luce Irigaray e Elizabeth Grosz em torno de reinterpretações feministas da epistemologia Ocidental e a sua procura de composição de novos modelos de ciência que reconstituam as relações corpo-conhecimento, no processo quebrando com estereótipos do corpo-homem e do corpo-mulher.

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