15.11.13

notas sobre peles precárias


1. escrita branca

tentativa minha de há anos para cá, insistência mais intuitiva e opaca do que qualquer formulação teórica consiga admitir: escrever o corpo, escrever o corpo, escrever o corpo. lição feminista antiga e repetida de inscrever o carnal na representação e urgência queer de fazer-falar o desejo. os arcos desse pensamento tomam a solidez de lemas claros: exemplo: escrever a pele. disparate tão grande, diz-me agora a diferença entre as peles, na sua multiplicidade de pareceres, posições e poderes: disparate falar a pele (a pele) quando desenhada a diferença entre inscrita a pele versus a pele que espairece, a pele que entretém versus a pele entrevista, e por aí fora. a pele: a minha pele é invisível, nem pele é; transparece directamente ao meu conteúdo-pessoa (leia-se: é branca); olhar nenhum se interroga ou interrompe nela: é claro que me permito pensar em grande passo e pressa como falar a pele, como se existisse tal coisa da pele com pê grande e total.

mas então: qual o acto de contrição carnal e textual para que as minhas várias invulnerabilidades não passem impunes? ou: que fazer desse acto de contrição sequer, se nesta instância dar azo à culpa não é mais que o retorno ao velho código católico e a reafirmação da incarnação da lógica de uma vergonha que eternamente reverte e retorna sobre o próprio mas nada para o outro produz? mais um rapaz branco escreve sobre si mesmo e a terra mantém-se no eixo. não faço ideia de que fala possa, mas estou a tactear um método: marcar as minhas (i)legitimidades; fazer texto sonoro e solidário. pequena oportunidade de deixar transparecer específico o meu território: tentativa de marcar a pele branca como tal: escrevê-la e circunscrevê-la como condição de a estender a outrem.

2. poética parda

cresci com a a minha mãe a reinventar-se antropóloga física do século XIX e a extraviar por todas as especulações etnográficas: se o meu avô teve o cabelo assim, então isso sinaliza que x; e certamente, se a minha avó tem esta doença sanguínea, e sabe-se que esta doença sanguínea foi trazida para Portugal através de sangue africano, e mais especificamente de uma comunidade de escravos africanos que há séculos se instalou e, através da miscigenação, se dispersou na área do Sado, segue-se que... a sofisticação da taxonomia racial dela ultrapassava a reconstituição genealógica ao concretizar-se em demonstrações práticas: eis que ida à Tunísia, era frequentemente tomada por tunisina e endereçada em árabe: isto prova que, etc. lição final: seríamos tudo menos brancos, de facto, seria impossível ser português e ser branco: a alheira, a cana do meu nariz e os arabescos do palácio da Pena seriam igualmente sintomáticos das estórias muitas que fazem a nossa História e o que faz o nosso ser seria ser perpetuamente desfeito em tantas coisas ser. efeito: no processo somos ilibados, por mais que ligeiramente, de qualquer caracterização completa enquanto racistas; como podemos oprimir não-brancos se brancos afinal nunca fomos?

a minha mãe gerou caseira a poesia bem-humorada e meio bronca de que o nosso racismo acabava logo onde acabava o nexo da nossa identidade étnica (leia-se: muito cedo); uma marca de sentimentalismo anti-racista optimista e recuperativo mas irresponsável e problemático. não é completamente arbitrário (a minha mãe para além de sentimental é historiadora): há qualquer coisa a dizer quanto à urgência de complicar o mapeamento étnico da história de Portugal e há silêncios incómodos em torno dos convívios e confluências que complicam os termos do corpo branco português, para além de que é importante contrariar a visão estanque que força o pensamento pós-colonial a uma geografia sempre externa à metrópole em si, como se o híbrido fosse produto colonial e não condição estrutural suprimida de qualquer viver colectivo. mas abre-se a questão: face às evidentes e insistentes e intransigentes forças de verdade e ser que o poder produz, de que vale dizer que a pele portuguesa é porosa e a sua brancura precária? há aí uma política? há aí uma poética?

3. acidentes interpretativos

pauso nessa poética: ele, ele anda por aí com pele pálida mas uma mnemónica no mezungo: anteontem a boca dele traçava outra memória qualquer; acendia um acidente interpretativo pelas curvas da cara ao ponto de gerar uma insegurança bem-afortunada nas linhas que nos fecham corpo e texto e estória e por momentos pensei: está outro aqui e vou-outro eu e além disto; as linhas são impuras, quer dizer: eu sei que não há linhas nenhumas. mas haver poder é algo dizer da linha pura e logo fazê-la: pouco resta de resistência em beijá-lo numa fala que se faça de acordo com o respeito ao espaçamento de outra ortografia correspondente à fisionomia do contingente. antes: nós somos forçosamente isto que somos e dizer o contrário é feio; só fala da plasticidade particular da nossa experiência precisamente na medida em que somos brancos. um ponto: a plasticidade é privilégio se é plasticidade sem risco ou perda; é saber do jogo das aparências e das suas belas sortes mas pouco das suas violências, da estreiteza das suas geometrias. então eu mantenho aí as minhas curiosidades, mas não chegam como um acto de generosidade, independentemente de um optimismo. plasticidades da minha própria pele: durante um ano no Reino Unido sou lido 1) espanhol, 2) norte-africano, 3) italiano, 4) israelita, 5) e por aí fora: vira literal a aprendizagem já feita de como a pele só opera em contexto; de como o corpo só comunica de acordo com o seu território. mas o privilégio do regresso é que tudo isso desaparece: sou totalmente transparente outra vez: conforto da pele-pátria.

4. desconfortos & derivas

por outro lado, desconfortos, mais e menos relevantes para este texto. pego num par. um: o desconforto sexual-identitário de ser “paneleiro” em sistema heterossexista: o meu desejo e corpo erram; as minhas famílias e filiações são distorções; o meu amor inverte-se e subverte; resta-me a sorte de a ciência me legitimar. outro: o desconforto psíquico-identitário de ser “depressivo” em sistema neuronormativo: o meu desejo e corpo erram; a minha cognição e afectos são ilegítimos; as minhas sensações e sentidos invertem-se e subvertem; resta-me a sorte de a ciência me curar. Umas poucas lições derivadas: quanto à violência das taxonomias de sujeitos e corpos e quereres; quanto à hierarquia que estrutura como as verdades de certos corpos são tomadas por mais legítimas do que outras; quanto a como há corpos tidos por problemáticos e patológicos que têm de ser remendados sem serem escutados e que têm de ser normalizados antes que possam escolher sequer os seus próprios nomes; quanto à vivência da diferença como vulnerabilidade constante e violentamente inscrita no corpo; quanto à perpétua precariedade de ter um corpo Outro...

sorte a minha e condição desonesta da minha subjectividade: nada disto me marca o corpo se eu não quiser: a minha pele mantém-se transparente. só um acto de fala como este interrompe a minha invisibilidade – segue-se que insisto nisso; faz parte das lições. e um segundo movimento de deriva dessas lições: o gesto de transposição do aprendido de uma identidade para outra; a comunicação e tradução entre experiências e categorias: um jogo com os limites de demarcação das identidades que desestabilize o absolutismo do identitário, a favor de um projecto tecido de afinidades e afiliações voluntárias e empáticas.

5. empatias precárias

então, eis a possibilidade optimista: a de atalhar e retalhar as lutas: aliterar precariedades entre “putas” e “paneleiros” e “pretos” e literais “precários” e quantos outros oprimidos: imaginar conexões entre vários corpos individuais e colectivos por conhecer e capacitar. quantos momentos para pôr a falar entre si tantos sujeitos excêntricos, corpos partidos, desejos desviados e peles-problemas? quantos modos ainda de descobrir não sei quantas mais empatias e coligações, filiações voluntárias e inventivas na crítica e resistência? isto partindo sempre da lição por-vir de que o nosso problema com corpos e desejos volta sempre a um problema com o corpo e o desejo; que as opressões múltiplas e diferenciações discriminatórias voltam de algum modo importante a algo por sarar quanto à nossa relação com estes; que o problema são sim estes e aqueles “diferentes” mas também toda a nossa concepção da diferença. ou seja, que a algum ponto desta trajectória captamos que estas estruturas discriminatórias são simultaneamente altamente diferenciadas entre si e por outro lado simultâneas e partilhadas; encaixam em meta-estruturas maiores, piores ainda de imaginar e combater, que requerem mobilizações transversais entre todo o corpo feito objecto e abjecto, à margem da normatividade e da legitimidade.

do corpo imigrante ao corpo deficiente, do corpo trans ao corpo negro... visão pesada e pessimista da profundidade das estruturas materiais e simbólicas que nos legislam; visão larga e optimista da proliferação dos laços hipotéticos e reais em que as nossas lutas entram em articulação. mas cuidado nesses movimentos generalizantes: que não percam a vista do específico, que não se aproprie e perca a diferença e se reproduzam precisamente as invisibilidades nocivas, os falsos universais e desigualdades obscurecidas que se procura combater. que se mantenha claro que por maiores que sejam as nossas vistas e as rearticulações das nossas peles, resta sempre e felizmente o resíduo da particularidade ao ponto do átomo e da impossibilidade fragilizante e violenta de um “nós” total: a pele é parcial.

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