9.11.13

os cús energúmenos


"Exigir o reconhecimento da homossexualidade tal como ela existe hoje, 
colonizada pelo imperialismo heterossexual, é mero reformismo."

excerto breve de "Les Culs Énergumènes", texto da autoria (então anónima) de Guy Hocquenghem, filósofo e acivista da FHAR (Front Homosexual d'Action Révolutionnaire). o texto foi publicado na colectânea "Trois Milliards de Pervers: Grande Encyclopédie des Homosexualités", nº 12 (Março de 1973) da revista "Recherches", exclusivamente sobre a homossexualidade. o número foi confiscado, considerado "um demonstração detalhada de deprevações e desvios sexuais" e "a exibição livibinal de uma minoria pervertida"; ordenou-se que todos os números da colectânea fossem destruídos e o seu editor, Félix Guattari (filósofo e psicanalista) recebeu uma multa de 600 francos. "Les Culs Énergumènes" circula pela net como "The Screwball Asses", a tradução da Semiotexte. este excerto foi traduzido a partir dessa tradução; um dia volto ao original. os negritos são meus. traduzirei mais do texto em breve, e farei a revisão em comparação com o texto francês.

não sei quanto deste texto envelhece bem e se traduz adequadamente através das linhas de divisão de contextos nacionais diferenciados. algumas notas ficam comigo: sobre o corte entre desejo e discurso. sobre a naturalização (problemática) do desejo como ética irredutível. sobre a tensão (mesmo: cisão) entre falar sobre o desejo e falar o desejo, percebendo que é impossível um discurso sobre o corpo que não deixe explícita e submeta à reflexão a mecânica libidinal que procura e produz esse discurso. sobre as quebras entre o nosso saber-sexual e o nosso viver-sexual. sobre os nossos estigmas e fetiches - a nossa relação com a luz e a sombra - a nossa exaltação erótica (simultaneamente reaccionária e revolucionária) da nossa negação e abjecção. sobre uma ética e uma estética da vergonha e do segredo que sobrevivem - e bem. sobre a propriedade dos despojados sexuais, e as contradições várias do campo da experiência homossexual (promíscuo versus romântico; anónimo versus competitivo; anómico versus normativo; fluído versus rígido). sobre a nossa reprodução automática e infeliz da mecânica heterossexual mesmo nas partes da nossa experiência que consideramos mais radicais e mais redesenhadas. sobre os gozos de um movimento pendular dentro das polaridades que nos definem e constrangem, não tanto para as destruir como para as desestabilizar ao ponto de nos rirmos e virmos. sobre a univocalidade - monomorfia - do nosso desejo, que se livra de um modelo para o refazer no passo seguinte, numa sombra paródica que nem sempre dá vontade de rir.

o que não fica é um certa ansiedade quanto a mímicas e máscaras do feminino; uma certa defesa da diferença sexual bem-intencionada mas demasiado literal na interpretação; o que não fica é que sobrevivam necessariamente determinados moldes-chave (ao contrário do que hocquenghem acusa, hoje, o bear está emparelhado com o bear, a bicha com a bicha, o jovem com o jovem, o armariado com o armariado, et cetera & ad nauseam). mas qualquer coisa no espírito da crítica, 40 anos depois, sobrevive - sobrevive até bem demais; preocupa-me. acho que vale a pena ler.

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1.

Meu Deus! Ao que brincam eles? Vá lá, isto é puro disparate! - Samuel Beckett

Deixem-me começar com a admissão de que o que se segue é exclusivamente endereçado aos indivíduos com os quais eu não posso fazer amor. Para todos os outros, a festividade dos corpos transforma a fala numa criada do corpo e nada mais. Não é inútil especificá-lo: nós só falamos sobre sexo à frente de pessoas com quem não o queremos ou que por outro lado não o querem connosco. A dicotomia entre fazer amor e falar-amor não vem de mim. Pelo contrário, ela enoja-me.

Posso colocar a hipótese de que assim que o desejo tenha incorporado em si o não-desejo (ou o assim chamado "não-desejo"), a revolução perderá o seu objecto? Por agora, falar em não-desejo é prova absoluta da sua existência. E tentar definir os obstáculos ao desejo amplificá-los-á também. Um projecto absurdo, admito, e ainda mais absurdo quando passa da fala à escrita.

Quase toda a gente concorda que a rejeição do desejo é soberana: "Eu não quero, e basta!" Um burguês de bem ou um trabalhador imigrante dir-te-ão a mesma coisa. E o estudante de esquerda repeti-lo-á ainda mais alto, visto que fez do desejo algo intelectualmente sagrado. Quanto a mim, cquando ouço alguém exprimir não-desejo, ouço por trás algo como "Não insistas! O capitalismo inscreveu esta rejeição no meu corpo."

Sinto a necessidade de escrever, em vez de continuar a falar sobre este assunto, precisamente porque se tornou impossível falar dele, até mesmo entre pessoas que partilham a mesma forma de desejo. Esta impossibilidade é ainda mais severa quando afecta o tipo particular de homossexualidade de que quero falar: uma homossexualidade que se considera revolucionária, que por sua vez perde de vista a revolução, ou cai vítima da sua pura teoria, e de que eu chamarei de homossexualidade energúmena (para me divertir).

Deixem-me começar com dois episódios recentes em que me vi envolvido, e que despoletaram a minha transição para uma explicação escrita. Eis o primeiro. Vários homossexuais decidem reunir à frente de um gravador para discutir um livro escrito por um deles, chamado "Desejo Homossexual". Estes homossexuais comunicam através dos seus laços intelectuais e do seu passado político comum e não através dos seus corpos; a maior parte deles fez parte da constituição da Frente Homossexual de Acção Revolucionária (FHAR), e podem ser considerados quase profissionais na libertação do desejo homossexual. Subitamente, como se um amador se tivesse intrometido no meio, alguém diz: "Parece-me que não podemos conversar sobre este livro sem primeiro reflectirmos sobre o desejo homossexual que existe entre nós e sabermos como ele circula, ou não circula, nesta sala". A atmosfera mais estupidificante de repressão da fala e auto-censura instala-se imediatamente. Durante as três horas seguintes torna-se tão impossível falar como ter uma erecção: uma situação de desejo proibido, entre o que podemos chamar militantes do desejo, nenhum dos quais, permitam-me acrescentar, tem um corpo corrompido pela natureza ou pela idade.

A segunda estória ocorre na Escola de Belas Artes de Paris. Aí, ocorre uma reunião aberta numa sala de aula, todas as quinta-feiras às oito, onde homossexuais vêm ter com a FHAR para encontrar expressão para o seu desejo por combate político e por sexo. Deixem-me tornar claro que ninguém, excepto eles próprios, frustra as suas efusões verbais, sentimentais ou corporais. Conforme saio da reunião, um rapaz leva-me pelo braço e conduz-me em direcção a uma passagem escura.

Entro num casebre escuro e húmido onde piso ao calhas poças de água e urina: as casas-de-banho de Belas Artes. Meia-dúzia de corpos, anónimos na luz fraca, estão aqui enlaçados em contorções que é impossível decifrar à partida. Sinto-me pesado pela cegueira obrigatória, o cheiro acre do mijo engasga-me e eu recuo, de imediato sentindo-me culpado. O rapaz ao meu lado murmura-me ao ouvido: "Que é? Tens vergonha?" Ele facilmente podia ter dito: "Tens vergonha, camarada?"

Bem, sim, tenho vergonha. Mas eu tinha vergonha da minha vergonha. É como se o desejo homossexual só se pudesse inscrever onde a repressão o inscreveu. Eu sei quantos paneleiros só têm casas-de-banho em que se possam tocar uns aos outros. Deprime-me que aqueles que decidiram sair dos seus esconderijos continuem a projectar a sua excitação nos sítios miseráveis que o sistema condescendentemente lhes cede e onde a polícia os provoca. Espasmos de casa-de-banho são como transacções bancárias: um fluxo de esporra corre nas sombras, tão desencarnado como dinheiro, cheques de esporra atrás da grade da janela do banqueiro.

Subitamente, torno-me fascista e quero perseguir os paneleiros da sua casa-de-banho com um chicote. Quero atirá-los para fora desta cela onde só podem gozar na escuridão. Estranho paradoxo: eles conseguem desejar quase qualquer um com pixa e cú (quem me dera conseguir também), sob a condição de que tudo aconteça na sombra, de que fodam sem se conhecerem uns aos outros, de que só os orgãos mecânicos estejam envolvidos.

Ponham as mesmas pessoas numa sala iluminada, como acabamos de ver, ou num prado tranquilo (para não mencionar um parque público), e começam a falar para escapar ao desejo, ou olham de soslaio uns para os outros, fitando o único corpo com o qual gostariam de estar a sós. A máquina desejante produz orgias ou casais crepusculares que se aproximam sob a luz e depois desligam a electricidade.


2.

É bom para um homem não tocar numa mulher. - Santo Paulo

Nós paneleiros temos coisas a dizer e temo-las dito àqueles que se defendem contra a sua própria homossexualidade. Mas também há coisas a dizer àqueles que glorificam a sua homossexualidade como sendo tão particular e insubstituível, e não são as mesmas coisas. Como uma picha traz sempre atrás alguma merda e porque nós estamos sempre a depositar esporra na merda ou deixando alguma merda na picha que sai de nós, nós somos os mal-cheirosos do jogo social. Sodomizados, nós somos os únicos que cagamos ao contrário. Mas ser os menos próprios não implica que sejamos os menos atentos à propriedade; ser os mais dissolutos não significa que não sejamos os mais competitivos; ser os mais mecânicos não nos conduz de modo algum a ser os menos românticos; nem ser os mais marginais implica sermos os menos burgueses.

O nosso andar de lagosta, de cabeça para baixo e rabo para cima, não é mais que um cliché da normalidade invertida. Nós programamos a homossexualidade tal e qual como um heterossexual imagina que ela possa ser vivenciada, do mesmo modo que ele a falaria ou fantasiaria, com machos de um lado e fêmeas do outro: eis os bears que desejam um homem falhado em vez de uma mulher, eis as bichas flamejantes que desejam um bear.

Enquanto os paneleiros continuarem a referir-se a si próprios no feminino e a perguntarem "Que horas são?" quando se conhecem, eles consolidarão o sexismo. Um taxista vira-se para as duas bichas que conversam atrás dele e exclama, irritado: "Eu odeio mulheres!" Que milagre, ele foi forçado a admitir a sua natureza falocrática, mas tudo volta ao normal quando as bichas respondem: "Pois bem, nós podemos encontrar um arranjo, temos uma cama grande em casa..."

Rapazes pequenos que não foram forçados a serem machos não têm medo de brincar durante o recreio: "Vamos fingir que sou uma rapariga!" Mas quando adultos, nós não nos podemos livrar da nossa obsessão com as mulheres fingindo ser uma delas.

Por vezes arrependo-me de não deixar a mulher dentro de mim expressar-se o suficiente. Se faço o papel da bicha, sinto que só revelarei as máscaras masculinas das mulheres. Tornar a ridicularização mais ridícula, a vergonha mais vergonhosa, ao ponto de fazer delas um espectáculo, embora seja um exorcismo útil, é fazer o mesmo que os burgueses que se maquilham de cinzento ou os revolucionários que se maquilham de vermelho. Há mulher dentro de mim, porque hei-de adicionar mais? Preferia perder-me entre o homem e a mulher que me habitam, tal como me perco quando me masturbo: aquele que tem o chicote e aquele que é chicoteado, aquele que prende e aquele que é preso, aquele que está por cima e aquele que está por baixo, não sei, a minha masturbação é um equilíbrio com duas escalas com resultados meio estranhos.

Sim, nós copiamos as relações normais, nós ocupamos ou o lugar do sujeito ou o do objecto, mas copiamo-las de qualquer modo. O homossexual de hoje em dia não encarna o desejo polimórfico: ele mexe-se univocalmente sob uma máscara equívoca. Os seus objectos sexuais já foram escolhidos pela maquinação social ou política, e eles são sempre os mesmos: ou mais fraco ou mais forte, mais velho ou mais novo, eu mais apaixonado por ele ou ele mais apaixonado por mim, mais burguês ou mais proletário, primitivo ou intelectualizado, über-másculo ou sub-masculino, negro ou branco, Árabe ou Viking, activo ou passivo, e por aí fora. A política já fez o seu trabalho subterrâneo. Se, ainda por cima, a consciência é envolvida na luta política, então as tendências heterossexuais e exogâmicas da homossexualidade de hoje em dia tornar-se-ão uma caricatura, e veremos mais e mais casos em que uma picha só pode fazer amor com uma cabeça e uma cabeça com uma picha.

Este movimento é complexo. Aqueles que só têm poder através do corpo, ou seja, através da beleza ou de um dorpo atraente, podiam desejar toda a gente se estivessem inteiramente no seu corpo, como é frequentemente o caso no mundo não-Ocidental. Mas frequentemente, no mundo Ocidental, ter poder corporal traz frustração. E por isso corpos desejáveis sonham com outro poder que não aquele do corpo, e o seu desejo vira-se para aqueles que têm o poder da fala. Esta é uma relação difícil, por vezes assusta-os, e às vezes proíbem-se da mesma por terem medo de serem marcados, mas é a sua verdadeira cibernética.

Do mesmo modo, aqueles que têm poder através da fala sem terem perdido poder através do corpo poderiam desejar qualquer pessoa. Mas o Ocidente incutiu em nós que uma dicotomia entre o corpo e a fala de tal ordem que ter poder através da fala eventualmente far-nos-á suspeitar que perdemos a desejabilidade do corpo. E por isso corpos de fala recusam-se a fazer amor com outros corpos de fala, fala contra fala na queda dos corpos, porque temem abdicar do seu poder da fala na arena. E o seu desejo vira-se de volta para aqueles que só possuem o poder do corpo e cujo corpo eles podem marcar com a fala, ou com a sua fala muda, ou cujo falo pode interromper o seu próprio discurso. Tais corpos de fala não podem falar enquanto fazem amor, e até fecham os olhos quando se vêm no escuro, tal como o fazem quatro em cada cinco mulheres francesas de acordo com o recente relatório Simon.

A tensa homossexualidade dos gays dissidentes consiste em foder aqueles que partilham do mesmo sexo, claro, mas não de línguas ou silêncios gémeos, e que, portanto, não pertencem à mesma origem, história ou linhagem. Uma tal homossexualidade foge de qualquer parecença mental e acha necessário construir os seus objectos sexuais no âmbito de outra raça, classe, cultura, enquadramento intelectual, objectos que são, muito simplesmente, de outra idade. Estes objectos sexuais não lhes devem corresponder em pensamento, e seria muito difícil partilhar uma vida com eles. Isto é uma forma de proibição contra o incesto fraterno.

Quando dizemos que toda a actividade social corresponde à sublimação do interesse homossexual pelo bem comum, é preciso também acrescentar que isto se aplica igualmente aos gays, independentemente do quão cómicas as consequências pareçam. Nós jogamos rugby, jogamos à guerra, jogamos a competição capitalista livre e ao activismo político, mas aqueles que jogam à homossexualidade revolucionária juntos têm muito cuidado em não dormir juntos, entre camaradas e amigos; não é coisa que se faça, não se misturam maçãs e laranjas. A proibição do incesto fraterno é latente na homossexualidade.

Torna-se imperial assim que o activismo político ou o activismo anti-político são envolvidos. A inclinação normativa política-desejante da nossa casta tornou esta mesma homossexualidade em exogâmia entre irmãos.

(...)


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