28.10.13

entrevista: preciado & butler [parte i]

entrevista a beatriz preciado & judith butler. [parte 1]: o impasse feminista // “uma boa dose de psicadelismo hedonista micropolítico” // santo foucault // guillaume dustan // materialidades da fala // “testo yonqui” // do biopoder à farmacopornografia // “potentia gaudendi” // melancolia de género




primeira parte: o novo sujeito da revolução

O feminismo estava num impasse. É a opinião de Judith Butler, filosófofa e principal responsável pela origem das teorias queer, mas também a de Beatriz Preciado, que abre o seu livro Testo Yonqui perguntando-se: “Que género de feminista sou eu hoje, uma feminista viciada na testosterona, ou um transgénero viciado no feminismo?” Não serve de nada aprofundar todos os dias e ainda mais a denúncia perpétua das desigualdades de que as mulheres são vítimas, se não se analisar a própria matéria da identidade enquanto “mulheres” que as aprisiona. Na sua estreia em 1990, também interessava a Butler a realidade do género, sempre problematizada (no seu famoso Gender Trobule), no prisma das homossexualidades.

Para ela, o corpo é uma construção. É isso que Preciado põe em prática: “Nenhum dos sexos que eu encarno possui densidade ontológica e não há outra forma de se ser um corpo. Despossessão desde a origem”. No seu livro, ela relata a sua experiência com tomar testosterona, faz o luto do seu amigo Guillaume Dustani - “último representante francês de uma forma de insurreição sexual através da escrita” – e encontra V. D. (Virginie Despentesii), a sua “puta” cujo “sexo fala a língua da revolução”. Neste “ensaio corporal”, manual de bioterrorismo romanticó-punk de linguagem violenta, erudita e cheia de fervor, Beatriz Preciado reflecte sobre o seu corpo, sobre as suas (novas) hormonas e sobre os seus dildos. Para Butler, a primeira, e para Preciado, que segue a mesma filiação teórica (Foucault, Deleuze, Guattari, Wittig, Haraway), as identidades homossexuais são subversivas e necessariamente problemáticas porque elas dinamitam a ordem heterossexual enquanto regime político articulado à reprodução. É o corpo na sua materialidade, nos seus géneros e nas suas múltiplas cadeias discursivas, fisiológicas e e ainda políticas, de um ADN mutante que é preciso descodificar.

Mais globalmente, para as duas filósofas, já não há o sujeito cartesiano, o Eu. Apenas essas técnicas, esses recursos, essas experiências, políticas, sexuais ou linguísticas que constituem a subjectividade do sujeito político. Os discursos têm uma materalidade, uma corporealidade, carne; como disse John Austin: “dizer é fazer”. São por isso eles que fabricam o indivíduo. Reciprocamente, o corpo constitui-se também com o discurso, o de Preciado ainda mais particularmente, porque ela inscreveu nele, através da sua experiência, uma verdade singular mas que tem valor universal: “O meu género não pertence nem ao feminismo, nem à comunidade lésbica, nem à teoria queer. É preciso retirar-se o género das mãos do macro-discurso e dilui-lo numa boa dose de psicadelismo hedonista micropolítico.” Eis o novo sujeito da revolução.


Beatriz, de onde vem a tua obsessão filosófica com o corpo?

Beatriz Preciado: Na altura em que estive num departamento de arquitectura, estudei com Derrida e publiquei o meu primeiro livro, que foi sobre dildos, o Manifesto Contra-sexual, através da Balland, numa colecção editada pelo Guillaume Dustan. Estava obcecada com o problema do corpo e da sua materialidade, e surpreendi-me muito ao descobrir a análise performativa da identidade realizada por Butler. A sua análise alterou radicalmente a minha maneira de pensar os géneros e a sexualidade. O que eu quis desde o início era pegar nessa análise e levá-la ao campo da corporalidade. Comecei a tomar testosterona e quis fazer um livro sobre a genealogia política das hormonas, a partir da obra da Judith e da de Foucault. Tratava-se de mostrar como passámos para um novo regime de controlo e de produção do género e da sexualidade.


Porque quiseste experimentar a testosterona e contar estas experiência em Testo Yonqui?

Beatriz Preciado: Na minha geração, ao contrário da de Butler, a testosterona foi introduzida brutalmente nos grupos gays e lésbicos e trans de tendência anarquista. Em Espanha, todos os meus amigos começaram a tomá-la. Eu sempre consumi drogas, então queria experimentar a testosterona, mas ao mesmo tempo não queria mudar de sexo e assinar um contracto de transformação sexual com o Estado, que é o processo comum dos transexuais. Muitos pensavam que eu ia converter-me num homem instantaneamente. Como se a hormona portasse a masculinidade em si. Politicamente, de facto, as hormonas são um sistema de comunicação, de circulação; são uma forma de contaminação viral. Tomei o meu corpo como um território de experimentação. A partir daí, tratou-se de um estilo de “auto-ficção”, mas não no sentido que se lhe dá hoje em dia, a do pequeno Eu, confinado ao privado. O corpo tem um espaço de extrema densidade política, e é o corpo da multiplicidade. É o universal no particular. Mas hoje em dia cresce a rejeição do enquadramento médico e psiquiátrico, a partir do qual até agora se definia a transexualidade. Trata-se de resistir à normalização da masculinidade e da femininidade nos nossos corpos, e de inventar outras formas de prazer e de viver em conjunto.

Judith Butler: O que é importante é o discurso que se está a formar à volta das hormonas e o poder que lhes é atribuído. Falamos como se de algo interno que nos afecta e que se expressa nas nossas acções, sobre as quais não teríamos qualquer controlo: “Lamento, é o estrogéneo; não é o meu cogito, mas sim as minhas hormonas”; é algo que se ouve frequentemente. Ora, claro que há algo de verdade neste discurso, mas a verdadeira pergunta é como ele foi constituído enquanto verdade. As hormonas produzem sempre uma situação fisiológica, mas elas são sempre interpretadas, consciente ou inconscientemente, e as crenças quanto à hormona “masculina”, a testosterona, são ilustrativas.


Hoje em dia ainda tomas testosterona?

Beatriz Preciado: Continuo a fazê-lo de forma esporádica, em momentos muito distanciados uns dos outros. Para mim, a testosterona é uma droga sexual. Não creio na verdade do sexo, nem masculino, nem feminino. Nem com a testosterona, nem sem ela. O sexo e o género produzem-se na relação com os outros. Como a Judith demonstrou, é uma questão de actos.


Como se passa do conceito de biopoder de Foucault ao farmacopoder ou farmacopornografia?

Beatriz Preciado: Foucault fez uma análise muito interessante da produção de identidades no século XIX pelo discurso médico, pela lei e também pelas instituições de reclusão. Estas arquitecturas externas foram controlando, regulando, disciplinando, medindo a vida ou biopoder. Isto foi o que permitiu uma compreensão extremamente precisa do momento em que a identidade sexual foi inventada. Mas também sempre me fez confusão o facto de Foucault nunca ter realizado uma arqueologia do presente, do corpo gay e lésbico ou da normalização da sexualidade contemporânea, sendo que ele conheceu o feminismo e os começos do mundo gay e lésbico, os Estados Unidos, São Francisco. Penso que era muito complicado para um intelectual gay ter um discurso na primeira pessoa nos anos 70. A sua análise teria perdido credibilidade. Ele falou muito pouco sobre as técnicas contemporâneas de produção das identidades, como o cinema, a fotografia, os discursos de comunicação de massa, e não disse absolutamente nada sobre a pornografia (tirando a do século XVIII). O meu objectivo era cruzar a análise performativa de Judith com a arqueologia crítica dos dispositivos disciplinares de Foucault, e levá-los para o território do corpo, e das tecnologias bioquímicas e pornográficas. Aqui, entramos na questão do farmacopoder. A partir dos anos 40, o biopoder toma a forma do regime farmacopornográfico, segundo a minha interpretação. O regime disciplinar que coincide com o aparecimento do capitalismo industrial baseava-se na repressão da masturbação. Basicamente, a masturbação era um desperdício de energia por não servir a lógica de continuidade entre o sexo e a reprodução da espécie. Assim sendo, para vigiar o corpo, as técnicas de controlo miniaturizam-se depois da Segunda Guerra Mundial; com a invenção das hormonas, as técnicas de controlo tornam-se interiores. Já não é necessário o hospital, o quartel, a prisão, porque agora o próprio corpo foi convertido num território de vigilância, na ferramenta definitiva. O que está a acontecer quando se toma testosterona ou a pílula? Engole-se uma cadeia de signos culturais, uma metáfora política que comporta uma definição performativa de construção do género e da sexualidade. O género, feminino ou masculino, aparece com a invenção das moléculas. A seguir, e muito rapidamente, a pornografia estabelece-se como nova cultura de massas e a masturbação volta a ser uma alavanca de produção do capital. A mão, que não tinha um género, tal como o ânus, é agora potentia gaudendi ou força orgásmica, um utensílio de produção.


Judith, tu analisaste a melancolia de género no teu trabalho. Encontras esse fenómeno no livro de Beatriz?

Judith Butler: Alguns psicanalistas dizem que no seu livro a Beatriz se imagina toda-poderosa, megalómana, ocupando todos os lugares. Mas o que eu acho muito interessante é que ela nos convida a um campo de experimentação entre dois extremos que são, de um lado, a sua posição, e do outro, aquela da diferença sexual defendida pelos analistas. O que é perigoso, é pensar que a masculinidade é uma coisa bem-delimitada e a femininidade outra, e que ambas não podem ser senão assim. Também, a melancolia da qual falo aparece sobretudo na formação de identidades rígidas. Se eu exclamo, de punho no ar: “Eu sou homossexual!”, ou outra coisa qualquer, se a minha identidade é convertida numa coisa que afirmo, que devo defender, então há rigidez. O que é esta necessidade de nos fixarmos de uma vez por todas? Como se eu conhecesse o meu futuro, como se eu pudesse ser um todo contínuo! Existem formações identitárias que se defendem de sentir qualquer perda, e esta é a melancolia do sujeito homossexual que me interessa. Tomemos certas formas de hiper-masculinidade ou de hiper-femininidade na cultura heterossexual; elas têm um certo ar queer (performativo), porque são hiperbólicas. Um homem, por exemplo, que tenham medo de ter em si o mínimo traço de femininidade, e que viva perseguindo esses traços. No mundo gay e lésbico também pode haver uma certa “polícia da identidade”. Como se, enquanto lésbica, não serei nunca senão lésbica, não terão sonhos senão lésbicos, não terei fantasias senão com mulheres. A vida não é a identidade! A vida resiste a esta ideia de identidade; é preciso dar espaço à ambiguidade. Muitas vezes a identidade pode ser vital para confrontar uma situação de opressão, mas seria um erro utilizá-la para não confrontar a complexidade. Não se pode saturar a vida com a identidade.

Beatriz Preciado: Comecei o livro com um luto, o da morte de Guillaume [Dustan], e hoje em dia, faço o luto da identidade; nunca serei verdadeiramente lésbica, nunca serei verdadeiramente transexual, e esse luto é realmente libertador. Podia ter decidido não tomar testosterona, mas isso teria sido melancólico. A questão é como fazer um luto da política de identidade.


-- Revista Têtu, nº 138 (Nov. 2008)

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i Escritor e jornalista francês, assumidamente gay, notório pelo seu trabalho em prosa experimental de cariz principalmente autobiográfico e pelas suas políticas sexuais explícitas e polémicas - incluindo a promoção de práticas de barebacking (sexo anal desprotegido). Tornou-se conhecido com "Dans Ma Chambre" (ed. POL, 1996), uma espécie de diário dos seus encontros sexuais, que é um livro do caraças, mesmo.
ii Escritora e realizadora francesa.





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