excerto de um projecto meu sobre a depressão.
bracha l. ettinger, "eurydice no. 10" |
13 de Dezembro, 2014. A depressão é doença-moço ou
doença-moça?
Explico-me: quando falamos sobre a depressão ou de dentro dela,
falamos o corpo em termos de cadeias condensadas de binários: o corpo
depressivo é escuro (e não claro), passivo (e não activo), descendente (e não
ascendente), horizontal (e não vertical), violento (e não pacífico), fraco (e
não forte), volátil (e não estável), automático (e não intencional), emotivo (e
não racional), desmedido (e não moderado), mole (e não duro), líquido (e não
sólido). Ora esta matéria obscura e inerte, caída e deitada, instável e frágil,
irrascível e impulsiva, turbulenta e descontrolada, maleável e fluida: isto é o
quê se não a mais perfeita síntese de toda a simbologia sexista do feminino,
como se a estereotipia se tivesse radicalmente e ao extremo somatizado no
sujeito ao ponto da excepção patológica? O cruzamento dos códigos do feminino e
do depressivo surge-me aí tão perfeito e potente que hesito entre concluir que
a “mulher” está codificada enquanto psicopatológica ou que a psicopatologia
está codificada enquanto feminina; no final de contas, é impossível concluir qual
das associações despoleta a outra, qual a imagem-primeira, quando a ficção social
não tem qualquer real legitimidade causal: faz-se a si própria, tal como se
consome a si própria; é essa a operação da violência semântica do estereótipo:
esconde sempre a sua ausência de justificação história ao apontar para si
próprio enquanto fonte daquilo que efectua. Se o corpo que cai sobre-expressivo
e se desfaz em fluxos virtuais de não-sentido ao ponto do verter da verborreia
em entropia total do ventre é o corpo depressivo ou o corpo de uma” mulher”, é
irrelevante: é ambos, e nenhum dos dois.
Se calhar mais do que a parelha
femininidade-depressão interessa-me a triangulação femininidade-corpo-depressão, sendo o corpo o ponto
de mediação e encontro entre as duas construções no plano dos símbolos e dos
problemas colocados: quer a “mulher”, quer o psicopatológico, serão corpos-excesso, pois ao conterem em si enquanto
corpos determinados excessos – repito alguns termos-chave: fraqueza,
fragilidade, volatilidade, emotividade, impulsividade, descontrolo - , tornam-se corpos que são eles
próprios excessivamente corporais. (Nas
margens do texto, imagem dos corpos histéricos na clínica de Charcot, e as
primeiras notas de Freud, prestes a inventar uma “ciência”: eis o corpo
convulsivo, significante, compulsivamente falante. De uma mulher, de uma louca,
de uma mulher louca – de um corpo-excesso.) E aí voltamos a uma das mais determinantes e duras das estruturas binárias, uma
que é aliás fundamental para o inconsciente sexista: a oposição entre a mente e
o corpo. O que o corpo-excesso excede – e desfaz – é a consciência, é a razão,
é a mente. E na medida em que a mente é precisamente o que demarca as divisões
entre o humano e o inumano – sendo o corpo, pelo contrário, matéria muda
partilhada com tudo; algures entre uma vulnerabilidade e uma vergonha, um acaso
e um embaraço -, a perturbação que o corpo-excesso causa propaga-se em
ansiedades implícitas, inconscientes, muito potentes: o corpo-excesso, o
corpo-demasiado-corpo, remete o humano para o corpo mais do que para a mente,
leia-se, mais do que para o propriamente humano, e no processo toca nas
próprias estruturas de inteligibilidade, legitimidade e integridade do humano.
Há por isso poucos ataques tão graves à nossa ordem simbólica como o que de mais
feminino se inscreve numa mulher – ou o que de mais psicopatológico se inscreve
num doente mental – ou o que de mais femininamente psicopatológico e
psicopatologicamente feminino se inscreve uma mulher louca: eis um corte de
raíz com a pura ascensão do humano da razão falocrata. (As histéricas de
Charcot riem-se e Freud aperta a caneta.) Nada dilacera o simbólico como o
poder de uma mulher psicopatológica – é por isso que sempre foi, e continua a
ser, uma figura silenciada: no momento em que ela própria falar, rasga
completamente a realidade mal-remendada do que seja ou não ser humano –ser
inteligível, ser legível, ser íntegro enquanto sujeito – e ressoa-lhe boca fora
uma linguagem impossível, um novo imaginário, a mais escura das coisas e uma
utopia. Súbita e total mudança dos sentidos. (As histéricas de Charcot começam
a escrever a sua história e Freud descobre-se uma fraude.) Mas enquanto ela se mantiver
calada, preserva-se o poder de fechamento do estereótipo: a depressão é uma
doença-moça.
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