olá,
eu esclareço: esta
vista/voz vê-se e quer fazer-se:
adolescente:
desejo de ser-rapaz. existem três coisas no mundo: raparigas,
mulheres e rapazes. quer dizer, que estupidez, existe uma miríade de
outros corpos e posicionamentos também; estou só a traçar os que
aceito de entre os convencionais. apreensão adolescente: se eu um
dia for um homem, vou ser o contrário de uma mulher; por outro lado,
se eu por agora (ou para sempre) conseguir ser só um rapaz, então
sim, se calhar sou o contrário de uma rapariga, mas acima de tudo
sou certamente o contrário de um homem também. não que queira
calar um privilégio, obscurecer a minha posição. mas se conseguir
prender o meu desenvolvimento o suficiente para que o meu corpo
desdobre para os lados e não em frente, melhor para mim e melhor
para todas as envolvidas. preservam-se: raiva / excesso / ruído /
indulgência / riso / excitação. “desenvolvimento”: sim,
interroguemos grandes narrativas geopolíticas de evolução que
organizam hierarquicamente corpos, cronologias e culturas;
interroguemos também narrativas biopolíticas que organizam
hierarquicamente os nossos corpos, as nossa cronologias, na nossa
cultura. e ao querer um ser-rapaz não procuro colocar-me cúmplice
de uma valorização de cultura inteira do jovem acima do velho;
procuro falar mais particularmente que isso: procuro
particularizar-me. não tenho problemas com envelhecer; só preferia
morrer um rapaz-velho, e não um homem.
ango-depressiva:
ciclos e circularidades: vistas
fendidas; arritmias perceptivas; indulgências afectivas.
inconsciência & insistências; b-a-bá de uma biopolítica/biopoética da bipolaridade. ver: poética.
bicha: uma certa
crise-rapaz vivida desde muito cedo, até muito tarde e
progressivamente cada vez mais profundamente. a avó põe-me o lenço
na cabeça aos três (deixa de me tratar por “filha” aos vinte e
três); demasiado chorona aos seis, aos sete, aos oito anos; unhas
pintadas aos quinze e depois aos vinte e cinco e hoje em dia este ou
aquele traço que denuncia; uma certa legibilidade do corpo. mais do
que qualquer uma dessas coisas uma maneira de querer manipular o
estar em detalhes que marquem tudo; que iluminem uma particularidade,
que respeitem e respondam ao acidente do específico. detalhes
simultaneamente mais infimamente íntimos e mais publicamente
palpáveis. a diferença: ser-gay: é tender à desaparição: eis-me
universal; eis-me igual. versus: ser-bicha: é tender à aparição:
eis-me particular; eis-me diferente. pelo contrário, a única coisa
mais estranha e supressiva do que ser tomado por “hetero” seria
ser tomado por “gay”: neutralidade do desejo da indiferença.
necessário, mas não aqui: este espaço é seguro; não é neutro.
aqui os pronomes pulam e puxam como queiram. aqui às vezes as partes
arranjam-se menino, menina, e coisas mais complicadas do que isso
também. de resto, ver: feminista.
feminista: olá
mãe, olá avó. “uma certa crise-rapaz vivida desde muito cedo.”
aprendizagem da adolescência tardia: que a única coisa que me fazia
sentido do corpo era uma teoria gerada por e para mulheres, antes e
acima de qualquer comunidade material ou hipotética com rapazes
(muito menos com homens, ughh, homens). ausência do papá com
pê grande (pê de Papá, Picha, Poder) + encharcado no colo das
gajas na minha vida + todos esses toques femininos articulados em
puto a consolidarem-se noutra desdobragem ainda mais grave agora ao
descobrir-me a querer rapazes = safar-me no feminismo e em mais lado
nenhum; sentar-me no parque a pensar em género e pela primeira vez
desde criança deixar-me dobrar uma perna apertada sobre a outra e
eis placas tectónicas e oceanos em movimento e aceite o acidente de
eu me estragar todo rapaz, que prenda. grato à minha matéria
maternal-feminista. ver-me fazer de outro jeito qualquer. sei lá, e
isso só começa a explicação nos termos mais egocêntricos: é
claro que sou feminista. ver: queer.
luso-: território
= crise. vagos surtos febris de abril à parte, bem-instalado um
pessimismo crónico e colectivo; pergunta: o que é que significa
dizer que algo está em crise se a crise é perpétua? oscilação
molecular ou, histeria nacional a longo prazo ou, efeitos
psico-simbólicos da pobreza, muito simplesmente? este país isolou
tão firmemente o seu sentido do possível num projecto enquanto
potência imperialista que assim que colapsou de volta à sua escala
irreal enquanto canto do tamanho de um porto e uns quantos pastos na
ponta dum continente inteiro, entrou numa depressão de tal ordem que
nem sabe articular que parte do imaginário lhe dói. segue-se:
imaginar cá dói e ser é improvável (tão improvável ser bicha
quanto ser adolescente). ver:
suburbana.
poética: crítica
& criação: deixar cantar a superfície do texto ao ponto
de cortar e complicar sentidos. às vezes explicamo-nos, às vezes
expressamo-nos; às vezes paciência, às vezes potência. ver:
ango-depressiva.
suburbana: uma
certa aprendizagem do silêncio; uma nuance sobredesenvolvida (muito
mal-vinda) no pior afecto: o aborrecimento (afecto adolescente). menos opressões do que
supressões; menos violências fortes do que falhas na visibilidade
do que quer que seja meu ou mais. sofisticação acrescida na
relação com o nada & sensibilidade geográfica exacerbada.
claridade dos espaços todos falarem os seus campos e coordenadas de
identidade e inclinação. claridade também quanto à capacidade de
um espaço não falar (ou seja, ser hetero: neste mundo, todo o
falso-universal é hetero). desaceleração total. ver: luso-.
queer: afiliação
especulativa com outro território; apanhar-me a aprender-me melhor
noutra língua do que nesta; voltar à língua-mãe diariamente e
sentir as várias dissonâncias de ter encontrado e protegido termo e
trajectória noutro espaço imaginado mas não saber nem poder
materializar uma língua na outra ou ambas numa síntese. eu escrevo
“luso” e depois “queer” tudo seguido como que achando que se
eu deixar as palavras colarem-se eu safo-me de pensar no amplo fôlego
entre as duas que faz a fissura entre territórios inteiros,
histórias inteiras; cala-te geografia, para que eu possa pensar. mas
não, não me safo do facto da dupla-pertença ser crítica (quero
dizer uma crise, mesmo) e não complementar. mas duma fissura
fazem-se coisas bem boas. de resto, ver: bicha.
e
por agora basta.
obrigado,
d.
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