1.11.13

outubro trans

compilação dos textos que escrevi para a campanha stp – stop trans pathologization deste ano. os textos + as imagens que originalmente acompanham estão no blog das panteras rosa (outubro 2013) & na trans*zine das panteras, que pode ser acedida aqui.

grupo chaclacayo

1.

nasce-se e o primeiro momento de se ser feito sujeito, de começar a construção da pessoa através da sua diferenciação, é o da inscrição de uma de duas categorias: é rapaz, é rapariga. a palavra faz tudo: marca esse sujeito incontornavelmente, arranca o fazer-pessoa num "ele", num "ela". o discurso reveste o corpo de uma fala da diferença, mas é uma diferença de fala estrita e espectro curto: ou um ou o outro e nunca mais além. que outra fala de fazer o corpo imaginamos nós?

2.

nasces e cais aqui ou ali. o teu corpo é recebido e repartido, diferenciado e distribuído, por todas as forças sociais que te dirão o que és e onde vais antes de teres sequer fala ou acto teus. és entregue a um trabalho de vida inteira de te fazeres o que se decidiu já que farás e serás. é altura de quebrarmos todos estes moldes, tornarmos elásticas as nossas existências, darmos espaços aos que vieram e aos que venham para ser outra coisa, para ser outras mil coisas, rasgando a coerção a que somos submetid*s.

3.

um, dois, um, dois, um, dois, menino, menina, isto, aquilo, é, não é, um, dois. ele que faça e seja isto e ela que faça e seja aquilo e nunca nada mais, nunca o outro e nunca além. até ao dia em que se esgote, em que a raiva e mágoa da escolha forçada virem resistência e um fazer diferente e de mais: hoje eu sou outra coisa qualquer: o gozo é meu.

4.

menina faz isto mas menino faz aquilo, menino diz isto mas menino diz aquilo, menina pode isto mas menino pode aquilo. o corpo nunca está livre da regra e estão cá pais e ciência e sociedade para corrigir qualquer desvio, organizar as partes certas, censurar qualquer sentido extraviado do corpo. mas temos e resistiremos pelo direito a outro fazer, outro dizer, outro poder - outro corpo. a luta é também descobrir que ainda vamos a tempo de recuperar e proteger o melhor de ser-criança: o jogo do que somos e seremos.

5.

ele que crie e ela que cuide; o menino é humano e a menina é mamã (sempre aquém de humana), o menino é fazedor e a menina é doméstica (sempre aquém de fazedora). e no entanto adivinhamos tantos outros modos de redistribuir e recriar essas tarefas e características e desejos ao ponto de explodir a coerência de um ser ou outro. a chave não é capacitar nem o menino, nem a menina. a chave é capacitar a criança para ser tudo isso e nada disso, e ainda mais.

6.

o bicho-criança tem papá e mamã para lhe explicarem o mundo. mentira: o bicho-criança tem papá e mamã para lhe fazerem o mundo, precisamente no que não é explicado nem justificado: no que não tem nem lógica, nem argumentação, nem espaço de manobra. e se o bicho-criança é menina, menos espaço de manobra ainda. o bicho-criança grita; o papá e mamã agrilhoam. que forças temos para protestar, para proteger esse ser, quer bicho-criança quer bicho-adulto, de todas as violentas imposições que vive?

7.

é pornografia, é ciência? os discursos dominantes não captam nem possibilitam vivências excêntricas em relação ao binário de género, vivências que refaçam "homem" e "mulher" e outra coisa ainda além dos termos seguros e coercivos do sistema que vivemos. na hegemonia do binarismo de género deste sistema, nem a ciência nem a imaginação criam o outro corpo, o terceiro e quarto e quantos mais haja. resta a*s interssexo e trans e bichas e que mais ocupar um corpo ilegítimo e abjecto; um corpo tomado por inumano.

8.

crise das crises se não se recorta limpo o sentido do corpo em a) ou b): se nem menino nem menina, que fazer de um sujeito? a medicina treme em como forçar um nexo ao corpo, os pais vêem o futuro desfeito, a criança surge como uma coisa-problema: mais que um binário, logo, menos que humana. queremos quebrar com a falsa necessidade dessas categorizações coercivas. a nossa revolução será poder responder à pergunta "qual dos géneros?" dizendo "ambos", "nenhum", "outro" ou "todos". será reagir ao "ou... ou...?" com um simples "não!".



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