compilação dos
textos que escrevi para a campanha stp
– stop trans pathologization deste ano. os textos + as imagens
que originalmente acompanham estão no blog das panteras
rosa (outubro 2013) & na trans*zine das panteras, que pode ser acedida aqui.
grupo chaclacayo |
1.
nasce-se e o primeiro
momento de se ser feito sujeito, de começar a construção da pessoa
através da sua diferenciação, é o da inscrição de uma de duas
categorias: é rapaz, é rapariga. a palavra faz tudo: marca esse
sujeito incontornavelmente, arranca o fazer-pessoa num "ele",
num "ela". o discurso reveste o corpo de uma fala da
diferença, mas é uma diferença de fala estrita e espectro curto:
ou um ou o outro e nunca mais além. que outra fala de fazer o corpo
imaginamos nós?
2.
nasces e cais aqui ou
ali. o teu corpo é recebido e repartido, diferenciado e distribuído,
por todas as forças sociais que te dirão o que és e onde vais
antes de teres sequer fala ou acto teus. és entregue a um trabalho
de vida inteira de te fazeres o que se decidiu já que farás e
serás. é altura de quebrarmos todos estes moldes, tornarmos
elásticas as nossas existências, darmos espaços aos que vieram e
aos que venham para ser outra coisa, para ser outras mil coisas,
rasgando a coerção a que somos submetid*s.
3.
um, dois, um, dois, um,
dois, menino, menina, isto, aquilo, é, não é, um, dois. ele que
faça e seja isto e ela que faça e seja aquilo e nunca nada mais,
nunca o outro e nunca além. até ao dia em que se esgote, em que a
raiva e mágoa da escolha forçada virem resistência e um fazer
diferente e de mais: hoje eu sou outra coisa qualquer: o gozo é meu.
4.
menina faz isto mas
menino faz aquilo, menino diz isto mas menino diz aquilo, menina pode
isto mas menino pode aquilo. o corpo nunca está livre da regra e
estão cá pais e ciência e sociedade para corrigir qualquer desvio,
organizar as partes certas, censurar qualquer sentido extraviado do
corpo. mas temos e resistiremos pelo direito a outro fazer, outro
dizer, outro poder - outro corpo. a luta é também descobrir que
ainda vamos a tempo de recuperar e proteger o melhor de ser-criança:
o jogo do que somos e seremos.
5.
ele que crie e ela que
cuide; o menino é humano e a menina é mamã (sempre aquém de
humana), o menino é fazedor e a menina é doméstica (sempre aquém
de fazedora). e no entanto adivinhamos tantos outros modos de
redistribuir e recriar essas tarefas e características e desejos ao
ponto de explodir a coerência de um ser ou outro. a chave não é
capacitar nem o menino, nem a menina. a chave é capacitar a criança
para ser tudo isso e nada disso, e ainda mais.
6.
o bicho-criança tem papá
e mamã para lhe explicarem o mundo. mentira: o bicho-criança tem
papá e mamã para lhe fazerem o mundo, precisamente no que não é
explicado nem justificado: no que não tem nem lógica, nem
argumentação, nem espaço de manobra. e se o bicho-criança é
menina, menos espaço de manobra ainda. o bicho-criança grita; o
papá e mamã agrilhoam. que forças temos para protestar, para
proteger esse ser, quer bicho-criança quer bicho-adulto, de todas as
violentas imposições que vive?
7.
é pornografia, é
ciência? os discursos dominantes não captam nem possibilitam
vivências excêntricas em relação ao binário de género,
vivências que refaçam "homem" e "mulher" e
outra coisa ainda além dos termos seguros e coercivos do sistema que
vivemos. na hegemonia do binarismo de género deste sistema, nem a
ciência nem a imaginação criam o outro corpo, o terceiro e quarto
e quantos mais haja. resta a*s interssexo e trans e bichas e que mais
ocupar um corpo ilegítimo e abjecto; um corpo tomado por inumano.
8.
crise das crises se não
se recorta limpo o sentido do corpo em a) ou b): se nem menino nem
menina, que fazer de um sujeito? a medicina treme em como forçar um
nexo ao corpo, os pais vêem o futuro desfeito, a criança surge como
uma coisa-problema: mais que um binário, logo, menos que humana.
queremos quebrar com a falsa necessidade dessas categorizações
coercivas. a nossa revolução será poder responder à pergunta
"qual dos géneros?" dizendo "ambos", "nenhum",
"outro" ou "todos". será reagir ao "ou...
ou...?" com um simples "não!".
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